Todas as coisas são metáforas
«Todas as coisas são metáforas.»
A frase é atribuída a Goethe mas quem a pratica diariamente é um nome cimeiro da filosofia contemporânea: Maria da Graça. Mais conhecida por Assunção Cristas, é candidata à liderança do CDS-PP e ao Nobel da Literatura. Cristas não perde uma oportunidade de introduzir uma bonita referência metafórica no comentário político ao Orçamento de Estado, assunto com incompreensível pouco destaque na história da filosofia.
Se para Saramago a Ibéria era uma jangada, no que toca a comparar porções de território com objectos, Cristas afirmou que «Bruxelas foi o despertador que acordou Costa dos sonhos rosa avermelhados.» Apreciemos então em detalhe os vários níveis de complexidade interpretativa contidos numa única frase com aparente simplicidade.
Costa, que aparentemente é alvo de uma crítica por estar a dormir (típico dos preguiçosos que a direita odeia), comete a ousadia de sonhar. O duplo sentido é desfeito na análise cromática dos referidos sonhos. Se numa primeira análise o leitor incauto pode ver aqui um apelo ao sonho, à utopia, à construção por um mundo melhor e que Bruxelas é o mau da fita, enquadrando a frase na obra da autora facilmente percebemos que os "sonhos rosa avermelhados" são apenas meros sinais de uma fantasia socialista tingida com as cores da raiva, do sangue e do comunismo (que a direita odeia ainda mais). Costa, ficamos a saber, sonha a cores como a mãe do Eddie Vedder. E, a julgar pelo bom termos das negociações com Bruxelas, Costa carregou no botão snooze e continuou a sonhar.
Cristas dedicou-se depois à crítica cinematográfica. Por duas vezes catalogou o Orçamento de Estado como «filme de ficção», salientando que «é um filme que já todos conhecemos muito bem» e que «Costa e Centeno merecem o Oscar para melhor ficção.». Claramente emulando Camus, Cristas quer recordar-nos que "a ficção é a mentira através da qual se diz a verdade". E a verdade é que este é um filme que todos conhecemos muito bem porque já o vimos. Um governo socialista toma posse, a política de direita é revertida, Paulo Portas abandona a liderança do CDS. O argumento é parecido, muda o protagonista. Cristas é a estrela de um remake. Tipo Mad Max.
Não deixa de ser curioso que na sua única nomeação aos Oscars (que se saiba), Cristas garante mais diversidade cultural entre os nomeados do que toda a Academia de Hollywood.
Não querendo deixar de fora o público que prefere o sofá às salas de cinema, Cristas desenvolveu um spin-off do filme candidato a Oscar e comparou o Orçamento de Estado a «uma telenovela que ainda nem sequer estreou e já nos faz temer os seus capítulos seguintes». Mais uma vez a ambiguidade interpretativa em toda a sua excelência. Na aparente crítica a um seriado de qualidade duvidosa, reside igualmente uma capacidade de prender o tele-espectador à expectativa pelo futuro, a antecipação do medo, a ansiedade frente ao desconhecido. Orçamento de Estado e Walking Dead - aposto que Cristas deixou os dois a gravar.
Quando o Orçamento Geral de Estado for finalmente aprovado e entrar em vigor não sei que metáforas Cristas lhe dedicará. Ainda assim, se os seus méritos políticos podem ser discutíveis, confio que os literários não nos defraudarão e nos proporcionarão momentos de igual deleite. Até porque, como disse de Assunção o seu mestre Goethe: «para compreender que o céu é azul em toda a parte não é preciso dar a volta ao mundo.»