Trump, a infecção oportunista de um organismo doente
Factos alternativos. Pós-verdade. Pós-facto. Diferentes nomes para algo que todos os políticos usaram ao longo dos tempos: propaganda. Os regimes democráticos usam-na, os totalitários também. Mas a propaganda dos nossos tempos tem outro rosto, mais feio, mais perigoso. A derrocada dos media tradicionais e a ascensão das redes sociais e dos media alternativos, on-line, levou a que o mundo se enchesse de um ruído de tal forma ensurdecedor que qualquer pessoa se perde facilmente num caudal lamacento onde verdade e mentira se misturam de forma quase indistinguível. Não se trata de um processo amoral, de progressiva substituição da verdade pela mentira, o que costuma acontecer com a propaganda tradicional dos regimes totalitários: o Estado substitui a realidade por uma realidade alternativa, a verdade pela mentira, e os cidadãos apenas têm acesso à narrativa oficial do regime. No mundo pós-facto, toda a gente tem acesso a todas as narrativas, mas não consegue separar o que é falso do que é verdadeiro. Do ponto de vista da ética, as categorias “verdade” e “mentira”, que podemos classificar como duas faces da mesma moeda (a primeira é um valor “positivo” e a segunda um valor “negativo”), deixaram de existir, foram abolidas. Não absolutamente, claro: o bem e o mal ainda existem como valores éticos, simplesmente torna-se muito difícil catalogar a informação que recebemos, classificá-la correctamente de acordo com os princípios universais que regem o comportamento humano.
O livro 1984 trepou aos primeiros lugares dos tops depois da tomada de posse de Trump. Mas a obra de George Orwell não explica totalmente o fenómeno. Trump não é o “Grande Irmão”, o ditador invisível que controla o fluxo de informação através da linguagem, moldando a realidade definindo o valor das palavras, mas é o oportunista, o “con man”, surfando uma corrente reaccionária que surgiu na última década, uma força de combate aos avanços progressistas que transformaram o mundo ocidental, as conquistas sociais e culturais de minorias que foram criando o ressentimento na maioria. A maioria que olha para os direitos das minorias como uma ameaça ao status quo e que assistiu a cada nova lei que estabeleceu igualdade de direitos com perplexidade, encarando-a como uma inadmissível perda de poder. O combate ao “politicamente correcto”, bandeira do Tea Party e depois do movimento neonazi “alt-right”, não é mais do que um eufemismo (newspeak) para um avassalador movimento de reacção, conservador, uma tentativa de regresso ao que o mundo que existia antes das conquistas sociais das últimas décadas.
O movimento alt-right vai mesmo longe do que o Tea Party. Este era conservador na sua dinâmica e incorporava facções do Partido Republicano que estavam descontentes com o deslocamento do GOP para o centro. Os alt-right são revolucionários na sua essência (e isto não é contraditório com a essência reaccionária das suas ideias), pretendendo corroer por dentro o sistema até que voltem a ser estabelecidos os valores conservadores que o avanço progressista minou. Partem das margens onde permaneceram durante décadas (as principais figuras do movimento estiveram na sua juventude ligados a movimentos supremacistas brancos, como o Ku Klux Klan) em direcção ao centro. Encontraram em Trump o meio para chegar ao poder e implementar a sua agenda racista, xenófoba e racista. Voltando um pouco atrás: apesar da natureza revolucionária (têm isto em comum com o Partido Nazi original) da sua estratégia de chegada ao poder, o seu objectivo final é o regresso a um mundo que já não existe, quando os WASP e os seus valores de raiz puritana (white anglo-saxon protestants) dominavam a América. Make America great again.
O site Breitbart (e outros da mesma natureza), fonte de notícias falsas, exageros retóricos, propaganda anti-islâmica e xenófoba, impulsionou a tomada de poder disseminando pelas redes sociais durante os últimos anos os “factos alternativos” que foram alimentando a paranóia e o medo que sustentaram a vitória de Trump nas eleições. Esta força não seria suficiente para a tomada de poder. Mas Trump foi o veículo ideal para o processo. O seu oportunismo e a sua maleabilidade moral permitiram que todos os temas que preocupavam as franjas mais desfavorecidas da sociedade americana fossem incorporados nos seus discursos e na sua proposta eleitoral. Falou directamente para os brancos despojados de poder durante os anos de crise, proletários que acreditavam no sonho americano e que não tinham conseguido recuperar do descalabro económico pós-2008. Um populista alimenta-se das fraquezas da sistema que parasita do mesmo modo que uma infecção prospera mais facilmente num organismo debilitado. Menosprezado pela elite norte-americana, Trump aproveitou-se dos medos e do “disempowerment” dos WASPs para concretizar o seu sonho narcisista de bully nascido em berço de ouro. Não é acaso, e a ascensão de movimentos neonazis por todo o mundo é prova disso mesmo. Estamos a viver os tempos mais sombrios desde a Segunda Guerra Mundial.