"Quem não concordará com Pritchard (e com as suas dúvidas)?" pergunta a Penélope ali ao lado. E não tem sido a única na esquerda nacional a partilhar este artigo e as suas dúvidas como prova que, se calhar, 90% da esquerda britânica estará enganada, que Corbyn e deputados, eurodeputados e dirigentes do Labour e de restantes partidos à esquerda estarão a leste dos reais problemas com a construção da União. Que os povos e partidos da Irlanda do Norte, Gibraltar, Escócia e País de Gales, que a população da cidade de Londres e o seu recém-eleito mayor, nas sondagens e nas declarações todos pela permanência na União, estarão no engano e Ambrose Evans-Pritchard (AEP) estará no ponto.
Antes de ir ao artigo, o autor. Eu percebo a certa base de leitores que o AEP angaria na esquerda portuguesa (e não só). Um crítico dos "resgates" à Grécia, Portugal e Irlanda, assim como das políticas promovidas pela Comissão Europeia, pelo Conselho da União Europeia, pelo Conselho Europeu e do Banco Central Europeu nos últimos anos, relativamente à falta de racionalidade económica com que comandaram os destinos dos estados-membros da Zona Euro. Eu próprio já partilhei artigos dele nesta última meia década. Mas não me esqueci quem era o autor. AEP é um jornalista britânico, conservador, propagandista de teorias da conspiração sobre o Atentado de Oklahoma City de 1995, o mais mortífero em solo norte-americano a seguir ao 11 de Setembro. Há décadas eurocético, apesar de ser critico dos défices da construção económica e monetária europeia, e não do seu conteúdo ideológico. É o jornalista que, quando Cavaco nomeou Passos Coelho como primeiro-ministro em Outubro passado, gritou "coup" e propagandeou que o Presidente o fazia devido à pressão dos dirigentes europeus, que o chantageavam (como nós por cá sabemos e como o Filipe explicou aqui, Cavaco fez o que fez por ser Cavaco, ver ali outra coisa é abusar dos brownies).
Não digo que AEP não tenha razão em muitas das críticas que faz à União e à sua estrutura, sem dúvida. Mas analisemos então o artigo em questão.
"Stripped of distractions, it comes down to an elemental choice: whether to restore the full self-government of this nation, or to continue living under a higher supranational regime, ruled by a European Council that we do not elect in any meaningful sense, and that the British people can never remove, even when it persists in error."
Vou deixar passar a ironia do "that the British people can never remove" utilizado como argumento numa monarquia. Adiante. Esta é uma das críticas com mais nexo: a supremacia do Conselho Europeu no processo político da União. Eu subscrevo-a, quem nos dera a nós muita vezes que pudéssemos mandar o Conselho Europeu bugiar (e o Conselho da União Europeia) quando empata, impede ou é utilizado como desculpa permanente para a inação dos líderes nacionais. A atuação vergonhosa na crise dos refugiados é o melhor exemplo. Mas não entendo a crítica, não só por AEP mais à frente no texto elogiar o presidente do Conselho Europeu Donald Tusk ("If there were more Tusks at the helm, one might still give the EU Project the benefit of the doubt"), como por não não entender quando ele diz que os povos nacionais nada podem fazer quando o Conselho Europeu asneira - como não? Quem tem assento no Conselho Europeu são os chefes de Estado ou de Governo dos estados-membros, democraticamente eleitos e que frequentemente mudam, como é claro e óbvio. Fora algumas excepções (como a nomeação para cargos dentro da União), o Conselho Europeu toma decisões por consenso, como está explícito no nº4 do artigo 15º do Tratado da União Europeia (TUE). Isto é, todas as decisões políticas tomadas e dirigidas pelo Conselho Europeu são aprovadas com o acordo de todos os presentes, incluindo David Cameron, claro está (ou Passos Coelho e António Costa) - ou então não são tomadas. A população dum estado-membro não se conforma com uma potencial decisão do Conselho Europeu? Pressione e exija ao seu representante que lá vete tal ideia e ela não se consubstanciar.
"We are deciding whether to be guided by a Commission with quasi-executive powers that operates more like the priesthood of the 13th Century papacy than a modern civil service; and whether to submit to a European Court of Justice (ECJ) that claims sweeping supremacy, with no right of appeal."
Aqui AEP vai a um dos pontos mais referidos no debate: a democraticidade da Comissão Europeia. Ora bem, antes mais, sobre o assunto, ide ler o Steven Peers e o Laurent Pech sobre o assunto. Depois, vamos ao ponto: não sei bem qual é o termo comparativo para "priesthood of the 13th Century papacy", mas a Comissão com todos os seus défices (e Deus sabe que os tem) é capaz de ser mais democrática e transparente na sua nomeação e atuação politica do que a maioria dos governos nacionais da União. That's right. A Comissão, cujo presidente foi o candidato ao cargo do partido europeu vencedor das eleições europeias de 2014 e que o Conselho Europeu nomeou como presidente-indigitado (ao abrigo do nº7 do 17º do TUE, que desde 2009 obriga o Conselho Europeu a ter "em conta as eleições para o Parlamento Europeu"); que o plenário do Parlamento Europeu aprovou após reuniões prévias com todos os grupos parlamentares, audição e debate do programa político no plenário com o candidato; cujos comissários-nomeados por todos os governos nacionais (nós nomeamos Moedas, lembram-se?) e com distribuição de pastas e hierarquia decidida pelo presidente da Comissão tiveram que se submeter a audições prévias no(s) comité(s) do Parlamento Europeu da sua área de tutela; cujos comissários-nomeados tiveram que ser previamente aprovados nestes comitês parlamentares, com os deputados dos comités ITRE (Indústria, Investigação e Energia) e do ENVI (Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentar) a chumbarem a nomeada para Vice-Presidente da Comissão com a pasta da União Energética por manifesta incompetência para a função, obrigando a Eslovénia a retirar a candidatura da sua ex-primeira-ministra e a nomear outra comissária, a quem Juncker acabou por atribuir a pasta dos transportes; cujo o Colégio de Comissários apenas entrou em funções quando o plenário do Parlamento Europeu o aprovou, com 423 votos a favor, 209 contra e 67 abstenções (com os eleitos pelo PCP e BE e a eurodeputada Liliana Rodrigues do PS a votarem contra e os restantes eleitos do PS, PSD, CDS-PP e MPT a votarem a favor). Todo este processo é, lamento dizer, mais democrático e escrutinável que a nomeação do Governo Português, a quem basta um convite pelo Presidente da República e uma maioria dos deputados que não apresente e aprove uma moção de rejeição no parlamento para entrar em funções (e, caso não haja moções de rejeição propostas, apenas basta entregar e participar no debate do programa de governo na Assembleia da República, sem ter que se sujeitar a qualquer aprovação parlamentar). É também curioso que é um britânico use metáforas clericais para criticar a Comissão, mas não denuncie o facto de o Reino Unido ser a única democracia europeia que reserva 26 lugares na câmara alta (ela própria composta de surreal legitimidade "democrática") do seu parlamento para bispos da Igreja Anglicana, que participam assim no processo legislativo britânico...
Já a crítica ao Tribunal Europeu de Justiça, a mais alta instância do Tribunal de Justiça da União Europeia (sim, eu sei, quem pensou nas nomenclaturas não foi muito imaginativo), roça o taxismo - sim, em matéria de legislação europeia, o Tribunal de Justiça é o topo da cadeia judicial (admitindo recurso interno das suas decisões, claro, como é óbvio) como existe em qualquer sistema judicial, como o Supremo Tribunal de Justiça é a última instância dos tribunais judiciais portugueses, tal como o Tribunal Constitucional é o mais alto tribunal na matéria da lei fundamental e cujas decisões são definitivas e inapeláveis. Isto agora é anti-democrático, querem ver? AEP aqui parece ir buscar a um desprezo que os britânicos têm por um outro tribunal, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que há muito tem estado em conflito com o governo britânico e que muitos consideram erroneamente ser uma instituição da União, mas é na verdade referente ao Conselho da Europa, uma organização inter-governamental distinta (e, mostrando mais uma vez que não partilha propriamente fileiras com Nigel Farage, AEP mais adiante no texto denuncia quem faz campanha contra a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, mas infelizmente apenas por esta ser garantia da manutenção dos acordos de paz na Irlanda do Norte e não pelos direitos que ela protege...)