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365 forte

Sem antídoto conhecido.

Sem antídoto conhecido.

28
Nov13

Quem não se dá ao respeito, não pode ser respeitado

Cláudio Carvalho

Nas últimas duas semanas dois eventos exaltaram, quase transversalmente, a sociedade portuguesa, da esquerda à direita. Primeiro, registou-se uma manifestação das forças policiais que culminou numa invasão pacífica da escadaria que dá acesso à entrada principal da Assembleia da República e que não teve resposta por via da violência física das (escassas) forças que protegiam o edifício. Já esta semana, trabalhadores afetos a organizações sindicais invadiram vários ministérios demonstrando o seu descontentamento e exigindo serem ouvidos pelos respetivos ministros. Estes eventos têm tanto de preocupantes como de naturais e tão ou mais preocupante do que se sucedeu é/foi a pronta condenação destes eventos por personalidades e grupos políticos - partidários ou não - afetos à esquerda. Ora, instituições democráticas que não se dão ao respeito não podem - ou nunca vão - ser respeitadas. Esta é a premissa básica para compreender que uma democracia sai fragilizada sempre que o principal infrator é um órgão de soberania, nomeadamente o poder executivo e mesmo que o culpado principal seja unicamente este (que não é o caso até), a democracia representativa na sua globalidade é sempre afetada. Como já aqui referimos, existe um «trilema da gestão política da crise» (vd. http://365forte.blogs.sapo.pt/118020.html de 5 de outubro de 2013) que não pode ser descurado. Não é possível compatibilizar dois destes três conceitos: austeridade, paz social e democracia. Os agentes socioeconómicos reagem a estímulos. Não adianta cair nos desejos idealistas do que deveria ser o comportamento adequado, descurando todos os pressupostos, toda a ação a montante - i.e. austeridade desproporcionada, mal distribuída e/ou ferindo, por várias vezes, o pilar contratual da nossa sociedade que é a Constituição - que deu origem à perturbação da paz social e que fragiliza a democracia a cada dia que passa. Uma esquerda democrática e não preconceituosa relativamente a certos grupos socioprofissionais não pode nem deve censurar à reação natural desses mesmos grupos a estímulos induzidos por instituições que não se deram ao respeito e que não fizeram respeitar a democracia em tempo útil. Esquerda que não respeite este princípio, não é esquerda: é um «ombro amigo» de quem nos governa.

22
Nov13

Perigosos simbolismos

Pedro Figueiredo
Imagem CMTv
O derrube das grades de protecção e a consequente subida da escadaria da Assembleia da República por parte das forças de segurança que ontem se manifestaram vai mais além do valor simbólico que possa ter. É um perigoso simbolismo. A vários níveis.
Desde logo porque ficou bem claro ao país que os cidadãos não são todos iguais. Durante a marcha dos agentes até ao Parlamento já tinha ocorrido o rebentamento de petardos (qual claque de futebol...), o que levou os organizadores a pedir alguma contenção na forma como expressavam a sua indignação. A justificação, válida, é que por serem autoridade não podiam manifestar-se como qualquer outro cidadão. Teriam de dar o exemplo.
Era só o pronuncio do que viria a acontecer depois, ao serem derrubadas as grades de protecção e de terem subido a escadaria ficando, simbolicamente, cara a cara com as portas do poder. Entrar será o passo seguinte?
Acontece que, não se podendo alhear do facto de se tratarem precisamente de agentes de segurança pública, o comportamento das forças que garantiam a segurança não se teria verificado se fosse com qualquer outra classe de manifestantes. Não sem que tivesse havido intervenção para reprimir tão ousado acto. Perigo número um, a que o Governo não pode simplesmente assobiar para o lado. Aliás, que dirá o ministro da Administração Interna sobre o sucedido? Para todos os efeitos, tratou-se de uma invasão.
Há ainda outro perigo, de muito maior gravidade, e que merece proporcional atenção. Paulo Rodrigues, da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia, reconheceu no momento que apesar de simbólica, a subida das escadarias poderia não ser abonatória à imagem dos agentes envolvidos. No entanto, tal também serve para justificar o «grau de desespero» [expressão do dirigente sindical] a que muitos profissionais já chegaram.
Isto na mesma noite em que Mário Soares, na Aula Magna, no encontro para a Defesa da Constituição, da Democracia e do Estado Social, alertava: «É verdade que há muita gente com medo. Mas outros estão tão desesperados que já não têm nada a perder.» E não há nada pior do que ter gente desesperada, sem nada a perder, armada na rua. Sejam agentes de segurança ou não.
20
Out13

Brincar com o fogo

Nuno Pires

 

A minha tarde de sábado foi passada a fotografar a manifestação organizada pela CGTP em Lisboa. Das várias fotografias tiradas, destaco aqui a de uma cidadã que, erguendo a bandeira de Portugal, empunhava um cartaz com uma mensagem. Tirei várias fotografias a esta manifestante, não raras vezes cabisbaixa, quase sempre em silêncio e denotando, de forma clara, desânimo.

 

Este desalento era visível também no semblante de alguns outros manifestantes, chegando por vezes a contrastar com aqueles que, de forma mais expressiva, demonstravam o seu protesto.

 

A este aparente desânimo de alguns manifestantes, juntou-se uma constatação que me foi transmitida pelo David Crisóstomo: o facto de haver, aparentemente, menos pessoas na manifestação deste sábado do que aquelas que houve noutros protestos recentes, também promovidos pela CGTP. E isto apesar de esta manifestação ocorrer no final da semana em que foram conhecidas as medidas constantes do Orçamento do Estado para 2014.

 

Poderá ser apenas uma perceção menos correta da minha parte, mas estes sinais levam-nos a recuperar e reforçar uma interrogação já lançada no passado: se não estaremos perante um certo desalento ou fadiga do protesto, nos seus moldes tradicionais, que leva a que vários cidadãos, independentemente das dificuldades que estejam a atravessar (ou que antecipam atravessar, face às novas medidas recentemente divulgadas*), já não encontrem no protesto organizado uma forma válida para fazer ouvir as suas reivindicações.

 

Estes são sinais que deveriam preocupar, desde logo, o Governo, apesar de não parecerem incomodar, de todo, os nossos atuais líderes. Com uma austeridade crescente, da qual não são visíveis quaisquer resultados positivos mas apenas um empobrecimento crescente da população, a que se soma o desmantelamento da rede de proteção assegurada por um Estado Social sob ataque, é mais do que certo que assistiremos a um reforço do aumento de situações de desespero (já atualmente em crescendo), o que poderá conduzir a atos irrefletidos e imprevisíveis, de cidadãos que já não têm nada a perder, e cujo impacto e propagação, num País em desagregação e numa União periclitante, poderão abalar de forma irreparável o nosso regime.

 

Já não é de agora, mas importa reiterar: este Governo está a brincar com o fogo - e quem se arrisca a sair seriamente queimado somos todos nós.

 


* - Dizer-se que as medidas constantes do Orçamento do Estado para 2014 eram já conhecidas desde maio passado é uma injuriosa tentativa de passar um atestado de estupidez a toda uma nação. Ainda por cima quando o próprio Governo, na pessoa do irrevogável vice-Primeiro-Ministro, alegou desconhecer os moldes de uma das medidas mais ignóbeis do OE2014 como desculpa para não a ter mencionado numa conferência de imprensa recente.

 

 

 

19
Jun13

É o céu, senhores

Pedro Figueiredo

Foto de Paulo Vaz Henriques



Parece ser cada vez maior a evidência que, de todas as formas possíveis, legais e legítimas de dissolver a Assembleia da República e provocar eleições antecipadas, nenhuma delas vai surtir efeito até ao final da legislatura. Junho de 2014, data em que a troika sairá de Portugal, é só mais um mito. À inevitabilidade da austeridade como solução para o problema de desequilíbrio financeiro das contas públicas, juntou-se uma outra que os portugueses terão de suportar, mais uma vez com estoicismo: a inevitabilidade de aguentar este executivo até ao fim do seu mandato.


Depois da saída da troika, Paulo Portas, um dos protagonistas que poderia fazer cair a coligação, manterá o discurso em nome da estabilidade política para a credibilidade internacional. Ainda hoje o afirmou. Depois de Junho de 2014 entrar-se-á numa fase de negociação com uma nova troika, desta vez sem a presença do FMI, para um novo regresso assistido aos mercados. Para enorme satisfação do ministro das Finanças, convencido que é o seu excel a resultar.


O Presidente da República, outro dos protagonistas, já por várias vezes deu a perceber ao país que em Belém mora uma estrela. Pacificadora. Não se conte com ele para carregar no botão nuke e accionar a bomba atómica a que o próprio já se referiu. Também o Chefe de Estado acredita que a bem da estabilidade política, tudo se deve fazer para se ir aguentando o barco até passar o mau tempo. Seja lá para que direcção estiver a proa.


As manifestações têm sido partidarizadas, já que políticas são todas, e a adesão parece ter mais a ver com um clube de futebol, no qual as claques puxam só pela equipa da casa. Vê-se isso no movimento "Que se lixe a Troika", onde o Bloco de Esquerda domina; vê-se nas da CGTP, onde a quase totalidade é do Partido Comunista. O tempo também nunca ajuda: se faz sol dá para ir à praia; se está a chover, é melhor ficar em casa. Realmente, S. Pedro só pode mesmo ser o padroeiro dos investidores.


Podiam as pessoas vir para a rua manifestarem-se em massa (nem isso deve acontecer a 27 de Junho na Greve Geral), mas mesmo assim era preciso que o Governo saísse pelo próprio pé, o que está longe de acontecer. Este executivo, com sacrifícios de natureza diferente do resto das pessoas, tem-se aguentado com igual estoicismo a tudo o que tem protagonizado nestes dois anos, que só tem agudizado a insatisfação social. Desbarataram a vontade que ainda poderia haver em fazer sacrifícios que pudessem valer a pena.


Também é preciso não esquecer que foi sendo repetido até à exaustão o facto de Portugal não ser a Grécia (primeiro); não ser a Irlanda (depois); e já ninguém se atreve sequer a comparar a situação nacional à da Turquia ou à do Brasil. Pode este país estar a ver o mundo inteiro em convulsão que a reacção será certamente «Meu Deus, o que vai lá por fora. Vivemos mesmo no céu!»

06
Mar13

O descaramento dos algébricos

David Crisóstomo

 

Sua Excelência, o magnifico primeiro dos eruditos ministros, Pedro Manuel Mamede Passos Coelho, iluminado pela divina providência, afirmou recentemente, referindo-se aos protestos decorridos e por decorrer, que «não se deve confundir a árvore com a floresta»


Ora, houve uma manifestação no sábado passado, dia 2 de Março. Uma, salvo seja - 40 para ser mais preciso, pois ser preciso é necessário, o Excel não perdoa. Esta manifestação, convocada por um movimento cívico sem ligações orgânicas a nenhum partido politico ou sindicato, tinha como objectivo primordial incitar os cidadãos portugueses a virem para a rua manifestarem-se contra o 'caminho correcto' padronizado por este governo e patrocinado por três instâncias internacionais. Pretendia-se que este protesto demonstrasse a rejeição das politicas cegas e dementes dum bando de impreparados, trapaceiros e ignorantes que desde Julho de 2011 dita os destinos da nação. Contestaria-se a legitimidade destes governantes nas ruas. As manifestações aconteceram. Os portugueses saíram de casa, enraivecidos e desgastados, contra a insanidade social que uns quantos mestres da busca pela simplicidade do conhecimento permanente lhes querem impor. Manifestações que levaram uma invulgar quantidade de cidadãos às ruas, de todas classes, faixas etárias e orientações politicas. Ninguém pode negar isto.

 

Ninguém? Think again.

 

 

 

04
Mar13

Profissionais anti-rua

Catarina Pereira

Não há manifestação, greve ou protesto de qualquer coisa neste país que não faça os profissionais anti-rua saírem do armário. E não se pense que falamos de uma tarefa fácil, porque não está ao alcance de qualquer um tentar, ao mesmo tempo, defender uma política destrutiva e desvalorizar as vozes dos portugueses que não aguentam mais.

O trabalho começa dias antes. A primeira tentativa parece básica, mas tem sido eficaz. «A manifestação é muito política», dizem. Com isto, afastam aqueles crentes numa sociedade sem partidos, sem organizações, sem movimentos, sem activistas, onde os bons superam os maus só porque deve ser assim. Essa sociedade, lamento, mas não existe, a não ser que acreditem no Pai Natal.

Nunca fui a uma manifestação que não fosse política. Até porque o objectivo, normalmente, é protestar contra as políticas de alguém. O povo não sai à rua porque, num sábado qualquer, se levantou indignado. Há sempre alguém que tem de organizar, de pensar, de promover uma manifestação. E eu, simples cidadã apartidária, não o faço porque não o sei fazer. Nem tenho tempo nem vontade para isso. Eu preciso dos partidos, das organizações, dos movimentos, dos activistas. Precisamos todos.

E quem acha que por ir a uma “manifestação política” está a tornar-se militante do Bloco ou do PCP é porque nunca foi a uma. Parece que alguns acreditam que à porta da manifestação há um senhor a perguntar se é do partido x ou y e, se não for, tem de sair. Quem entrar, tem obrigatoriamente de concordar com todas as palavras de João Semedo, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa, os alvos compreensivelmente preferidos dos jornalistas. E, durante a manifestação, cresce-nos a barba até ficarmos parecidos com o Che, altera-se a voz até soarmos a Fidel Castro e acabamos todos vestidos com t-shirts vermelhas da URSS. É assim que imaginam, não é?

Para quem não cai nesta, a seguinte estratégia é o medo. «A manifestação vai ser violenta», «os perigosos radicais estão a organizar-se», «cuidado que eles são maus», argumentam, usando comentadores e manchetes de jornais. E também há quem acredite. É óbvio que também os há, os profissionais da violência, mas enquanto acharmos que é mais importante lutar contra eles do que contra quem está a destruir o nosso país não vamos muito longe. Basta irem a uma manifestação para identificarem rapidamente onde está o perigo. E afastarem-se dele.

Depois chega a manifestação. E há centenas de milhares na rua, bem representativos dos milhões que estão fartos desta brincadeira. Para quem lá está, sente-se no ar a indignação, a tristeza, a revolta escondida dentro de um povo sereno (até ao dia em que o deixar de ser). Para quem ainda ficou em casa à espera de uma manifestação não política, pacífica, perfeita, que resolvesse todos os problemas do mundo, as imagens trazem algum arrependimento, inveja até, porque há pessoas que estão a lutar por nós. Para esses, ainda há esperança. Juntem-se na próxima.

E, depois, há os outros. Que se calam, que desaparecem milagrosamente nestes dias. Que são beneficiados por esta sociedade tal como ela está e por isso não querem que ela mude. Que se preocupam quando as pessoas conversam na rua, contam as suas terríveis histórias aos microfones, e choram, e gritam e cantam a «Grândola, Vila Morena». Esses, coitados, tiveram um 2 de Março tramado.

Mas não se pense que eles desistem. Há um governo, uma troika, um sistema para defender. Ainda por cima não houve confrontos, por isso não podem vir com a conversa anti-violência. E lá voltam eles à carga, logo pela manhã de domingo. A primeira tentativa até mete dó. Porque o Terreiro do Paço mede isto e não cabem estes e nesta fotografia há um buraco no meio da manifestação. Que tristeza. Como se a indignação dos portugueses se medisse em metros quadrados. Como se os números que nos preocupam não sejam os do desemprego, da pobreza, das falências, dos despedimentos, etc etc. Aí já não gostam de números, não é? Os números são uma seca quando não se acerta uma.

A segunda, mais perigosa, é a fase do rejubilo pela ausência de consequências visíveis. A manifestação não resolveu nada, não surgiram propostas, meu deus, eles nem apresentaram um programa político!!! Como se, ao desfilar pela Avenida da Liberdade no sábado, eu tivesse sido eleita para ocupar um lugar no parlamento, que é onde eles podem efectivamente mudar alguma coisa. Percebam isto: nós saímos à rua porque não aguentamos mais, porque queremos outra vida e porque o nosso exercício da democracia não termina no voto. Isto somos nós a avisar-vos que têm de mudar e dêem-se por gratos por o fazermos de forma pacífica, sem ameaça. Vamos continuar a fazê-lo, mas ninguém pode prometer que será sempre assim.

Ainda há uma terceira estratégia, que ontem me chegou por via de um ex-líder da JSD na televisão. “Os problemas do país resolvem-se a trabalhar, a exportar, a investir”. Isto insulta-me. Revolta-me mesmo. Como se as pessoas que ali tivessem estado não trabalhassem, não quisessem fazer nada na vida além de cantar umas músicas de Zeca Afonso, não fossem suficientemente portuguesas para lutar pela mudança. Estes meninos vivem no seu casulo laranja, rosa ou amarelo e azul e não nos conhecem. Acham que o salário médio de um jovem trabalhador ronda os 1500 euros por mês (juro, disseram-me isto), que um pobre tem sempre “ajudas” a quem recorrer (devem estar a falar da amiga Jonet, não sei) e que um desempregado é uma pessoa que apenas não é empreendedora o suficiente para criar o seu próprio emprego. Eles, que em muitos casos nunca trabalharam além das Jotas, além dos “debates” nas universidades de verão, além das campanhas para eleger primeiro os amigos e depois eles próprios. Oh, porque isso é que resolve tudo e ir para a rua é uma coisa tão de esquerda, que nojo.

Por último, há os amorfos. Que não pensam sequer em ir à manifestação, que não pensam em nada, que não reclamam, não reivindicam, não se queixam. Esses dão-me pena e, se nada os acordou até agora, temo que ficarão de braços cruzados para sempre. Só receio que, na hora do voto, sejam estes que vão lá fazer a cruzinha naquela que lhes parece a alternativa, noutra qualquer figura do bloco central e habitual de interesses, que lhes promete aumentos, menos impostos e uma vida melhor. E eles acreditam, outra vez. E votam, cumprem o seu papel de cidadãos, porque é no voto e não numa manifestação que mudamos isto, não é? Coitados, não percebem sequer que estão do lado deles.

23
Fev13

Cala-te. Está Calado.

David Crisóstomo

 

Houve uma greve geral no dia 14 de Novembro. A greve corria com grande êxito de Santa Cruz das Flores a Santo Aleixo da Restauração. O remate final dessa greve foi uma marcha de protesto que culminou naquele pedacinho apertado de calçada portuguesa em frente à escadaria da Assembleia da República. Esse protesto final, convocado pela CGTP, estava finalizado por volta das 16h30. Os sindicalistas arrumavam as faixas e os microfones e Arménio Carlos retirava-se após o que tinha sido, sem dúvida, mais uma 'greve histórica'. Contudo, os meios de imprensa começaram a notar que certos manifestantes não arredavam pé do final da nobre escadaria. Passados uns minutos começou o evento que iria marcar o dia: uma amostra desses manifestantes começou a escavacar esse mini-passeio onde a magna-escadaria concluía e iniciou-se uma série de bombardeamentos às forças policiais que ali estavam estacionadas. Todos sabemos como isso acabou. 

 

Socorro-me deste episódio do passado altamente recente com intuito de questionar: quem defendia que a policia não devia ter sofrido aquele apedrejamento, quem criticou aquela mão cheia de vândalos revoltados, estava a defender o Governo? Quem censurasse aquela matilha que não sente remorsos em pegar num calhau de calcário e atirá-lo à cabeça dum outro ser humano, estava a atacar a manifestação que horas antes ali tinha estado? Estava a atacar a greve geral? Se afirmarmos que o comportamento das bestas que ali estavam com o objectivo de partir crânios foi nojento e revoltante, estaremos então, por lógica barata, a defender o Governo e seus ilustres membros? Quem tem repulsa pelo canhoneio a policias que defendem o parlamento português, está a aprovar Relvas?

 

Recordo estas questões face ao tumulto de opiniões que têm por estes dias polvilhado a sociedade face aos acontecimentos da passada terça-feira no ISCTE, envolvendo a douta criatura que dá pelo nome de Miguel Relvas. Acontece que, passado o período de reacções ao sucedido, chegámos à fase onde três correntes de opinião se formaram: 1) quem acha que o que se passou foi uma manifestação legitima, justa e apropriada ao grau de repulsa que tal fulano causa nas pessoas com neurónios; 2) quem, tendo nojeira por todos os actos passados do Dr. Relvas, tem dúvidas ou manifesta oposição à forma de protesto escolhida naquela tarde; 3) quem acha que tudo aquilo foi um golpe d'estado onde o estimadíssimo Ministro Adjunto, dos Assuntos Parlamentares & Outros Assuntos viu a sua imaculada honra atacada por um bando de assessores do PCP, do BE e sabe lá Deus nosso-senhor donde. Ignorando esta última (também é pouca gente, deixem lá), ficamos com duas opiniões que, partilhando do mesmo desprezo pelo mestre da simplicidade da busca pelo conhecimento permanente, discordam na aprovação total do que se passou naquela faculdade pública, estando na base dessa discordância a violência (verbal, que não foi física por centímetros) utilizada e a limitação do direito à liberdade de expressão do vil ser. E numa sociedade evoluída ficar-se-ia por aqui, com um debate de ideias e argumentos respeitoso e maduro. Há discordâncias, pronto, olhem, c'est la vie. 

 

Todavia, não é isso que se tem passado. A fação que defende que aquilo foi lindo, genial, de aplaudir, dedicou-se nos últimos dias a atacar quem dela discorda. A argumentação basicamente tem sido um 'badamerda, relvistas, salazarentos, mansos, betinhos de direita, vocês são mazé contra o direito à manifestação, pró-troika,  pró-pacto de agressão, vocês morrem d'amores pelo governo que a gente já vos topou!' ou qualquer coisa deste género. Basta um passeio pelas redes sociais da 'verdadeira esquerda' para vermos como é que a coisa funciona: ou se está ao lado deles em tudo e de toda a forma, ou temos fotos do Passos Coelho escondidas debaixo da almofada. É um mundo simples. É um mundo onde toda a outra argumentação, todo o outro pensamento critico oposto é rotulado como sendo 'contra o povo' - mesmo que essa argumentação se possa basear em valores tão universais como a liberdade de expressão, o direito à integridade física e moral, à igualdade perante a lei, etc... 'Ou estás comigo, ou és meu inimigo' é basicamente o motto. Fascistas e sonsos são aqueles que não estão com eles. 

 

É difícil não entender o ridículo e o deplorável deste tipo de raciocínio. Baseiam-se em falácias e pensamentos fechados infantis, onde pode-se atacar sem pudor aquele de quem desgostamos/discordamos/desprezamos porque sim, porque tem que ser. Este desconforto com o debate, com a pluralidade de opiniões (e não a dualidade que teimam em querer vender) revela-nos o estado ainda precoce de desenvolvimento da cultura democrática em Portugal, onde a mera divergência é tratada como um ataque directo e personalizado à base de valores fundamentais. Tudo é justificável, desde que seja feito em prol dos 'verdadeiros ideais'. Se for necessário o silenciamento, que se silencie. Se for necessário o ataque verbal e psicológico, que se o faça. Se for necessária a violência física, avante. Se for necessário partir a cara de todo o cidadão que esteja no seu caminho, siga. Se for necessário o apedrejamento, é um mal necessário, pois a revolução não pode esperar. Relvas é Relvas por alguma razão, pois nesta sociedade floresceu. 

 

Camaradas, moderem-se, pensem um pouco no que dizem, a quem dizem, como dizem. Formalmente, (ainda) vivemos em democracia e num estado de direito. Há pessoal que discorde de vocês? Paciência, amanhem-se. Ou argumentem como gente crescida.

 

 

Post-scriptum - antes que me venham, como de costume, acusar de gostar muito do Relvas e das suas boas-companhias, deixo aqui claro que me revejo na opinião do Porfírio Silva e recomendo a leitura da posição do José Manuel Leite Viegas. Boa noite.


«As circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.»
- Ortega y Gasset

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