Um brinquedo novo
"O Hemiciclo lança hoje uma nova secção que passa a estar disponível nas páginas de cada uma das bancadas da Assembleia da República: o Índice de Concordância."
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"O Hemiciclo lança hoje uma nova secção que passa a estar disponível nas páginas de cada uma das bancadas da Assembleia da República: o Índice de Concordância."
Na edição de ontem do Diário de Notícias sou citado em nome do Hemiciclo na peça intitulada "O projeto de lei que foi rejeitado com mais votos a favor", que aborda dois episódios singulares recentes na Assembleia da República, onde um projeto de lei - Projeto de Lei n.º 670/XIII do PAN que Procede à alteração do Regime jurídico aplicável aos bombeiros portugueses no território continental, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 241/2007, de 21 de Junho - e parte de um projeto de resolução - os pontos 1, 2 e 5 do Projeto de Resolução 994/XIII do PCP relativo à Criação de um Programa para a redução e controlo da biomassa florestal - foram sujeitos a votações pelo Plenário e tiveram resultados que não coincidem com a dinâmica numérica dos deputados presentes nas respetivas sessões de votações regimentais. Rui Tavares também aborda o tema na sua crónica de hoje no Público.
Isto é, o projeto de lei do PAN foi rejeitado na generalidade apesar de, teoricamente, ter reunido 99 votos favoráveis (dos deputados presentes do PAN, PS e BE), 17 abstenções (PCP e PEV) e 98 votos contra (PSD e CDS-PP) no passado dia 29 de Novembro, que não terá contado com a participação de 16 deputados (15 ausentes e o Presidente da Assembleia da República que, ao abrigo do Regimento [n.º4 do artigo 93º], não participou nesta votação). Já a maioria dos pontos do projeto de resolução do PCP foi aprovada apesar de, teoricamente, ter reunido 94 votos a favor (dos deputados presentes do PCP, PEV, PAN e PSD), 16 abstenções (CDS-PP) e 96 votos contra (PS e BE) na passada sexta-feira, onde 24 deputados não terão participado nas votações (23 ausências e o Presidente da Assembleia). Dado que ambos os casos não exigiam maiorias especiais constitucionalmente consagradas, a votação decorreu com o método geral de "levantados e sentados" (ou seja, sem recurso à votação eletrónica).
Estes números destas votações são, claro está, teóricos por resultarem de um cruzamento de dados que o Hemiciclo faz entre os resultados das votações e a verificação eletrónica do quórum que sempre ocorre no inicio de cada período de votações pelo Plenário, de modo a permitir um escrutínio público da forma como cada deputado vota cada diploma em cada fase. Nesta verificação (e na subsequente correção por falhas ou dificuldades de registo, que os números do Hemiciclo já refletem) os deputados presentes registam-se nos lugares das suas bancadas para garantir a existência de um quórum mínimo de parlamentares (116 deputados) na sala das sessões para o inicio de deliberações. Todavia, como na Assembleia da República é permitido que os deputados saiam da sala após iniciado o período de votações (e voltem a entrar) - muitos deputados usando esta faculdade para, numa plausível afronta ao n.º2 do artigo 93º do Regimento ("Nenhum Deputado presente pode deixar de votar sem prejuízo do direito de abstenção"), saírem da sala para propositadamente evitar votar um determinado diploma - estes números e a imagem que o Hemiciclo apresenta do Plenário naquela votação é um cenário que pode não corresponder exatamente a quem de facto votou um determinado diploma. Contudo, para efeitos de responsabilização política (e à falta de um registo mais preciso), consideramos justo considerar que se um deputado se registou como presente naquela sessão de votações e não manifestou um voto distinto ao anunciado pelo seu grupo parlamentar, então ter-se-á sujeitado à posição assumida pela bancada e estará vinculado àquele sentido de voto como sendo o seu. O mesmo, contudo, consideramos já não ser politicamente justo para os parlamentares que não se tenham registado como parte do Plenário, estando assim ausentes daquela sessão de votações.
Sem embargo, juridicamente falando, o Hemiciclo segue as indicações da Mesa da Assembleia (e, como tal, as páginas referentes aos dois projetos em causa nunca apresentaram um outro resultado que não aquele que foi anunciado pela Mesa após as respetivas votações), que como é descrito na peça do Diário de Noticias, tem um entendimento distinto ao abrigo do nº3 do artigo 94º do Regimento:
"Nas votações por levantados e sentados, a Mesa apura os resultados de acordo com a representatividade dos grupos parlamentares, especificando o número de votos individualmente expressos em sentido distinto da respetiva bancada e a sua influência no resultado, quando a haja."
Para o parlamento, a "representatividade dos grupos parlamentares" é assim juridicamente medida como sendo referente ao total de deputados que cada grupo parlamentar contém, independentemente do registo da sua presença na sessão de votações.
A questão não é necessariamente nova. Ao depararmo-nos com esta aparente contradição numérica, verificamos de imediato as bases de dados das milhares de votações que o Hemiciclo disponibiliza desde 2009 para apurarmos se poderiam ter existido outras situações análogas - e não encontrámos qualquer outro caso. Falamos com jornalistas e procuramos perceber se havia memória de algo semelhante e, fora o episódio da Lei da Programação Militar de 2001, ninguém se recorda de uma aparente divergência entre o resultado anunciado pela Mesa e as presenças verificadas na sessão de votações.
Resumidamente, para os que não estão recordados: em 2001 foi aprovada em votação final global a proposta de lei que aprovou a Lei da Programação Militar - uma lei orgânica que, assim sendo, carece de aprovação na votação final global por maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções (116, portanto). Em 2001 o mecanismo da votação eletrónica era inexistente (é aliás criado em 2003 como resposta à polémica suscitada por este caso) e a votação ocorreu com o método dos "levantados e sentados". Todavia, por denúncia do agora Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e do jornal Expresso, é tornado público que não estavam na sala 116 deputados (do PS e CDS-PP) no momento daquela votação. Apesar de vários apelos para que devolva o decreto aprovado ao parlamento, o então Presidente da República Jorge Sampaio baseia-se na garantia da prática parlamentar dada pelo então Presidente da Assembleia da República, António Almeida Santos, para promulgar aquele diploma (uma atuação que teve como consequência a demissão de Marcelo Rebelo de Sousa do Conselho de Estado). Sampaio promulgou mas encomendou também a cinco constitucionalistas (Gomes Canotilho, Vieira de Andrade, Freitas do Amaral, Galvão Teles e Jorge Miranda) pareceres sobre a questão do método de votações e em Maio de 2002 envia uma mensagem de apelo à Assembleia da República referente ao seu procedimento legislativo, da qual destaco os seguintes excertos:
"Acontecimentos verificados na última legislatura introduziram algumas notas de perturbação e suscitaram algumas incertezas que importa ver dissipadas no estrito interesse do bom funcionamento e da imagem do Estado democrático e, como sempre tenho defendido, da dignificação e prestígio da instituição parlamentar. De facto, a partir do momento em que a prática até então institucionalizada e baseada na acreditação, por parte do Presidente da República, da declaração de aprovação que lhe é transmitida pelo Presidente da Assembleia da República foi questionada, o problema deixou de ser uma questão meramente interna da Assembleia da República. Toma-se necessário adoptar procedimentos e chegar a soluções regimentais que garantam ou evidenciem a inatacabilidade da regularidade processual de aprovação parlamentar dos decretos que o Presidente da República é chamado a promulgar."
"Assim, não parece razoável que dez ou vinte anos após a aprovação e entrada em vigor de uma lei se possa pôr em causa a respectiva validade e a estabilidade dos efeitos jurídicos entretanto produzidos com. fundamento, por exemplo, na apresentação de uma fotografia ou prova testemunhal, de um video ou filme através dos quais se procure demonstrar que Deputados dados como presentes no momento da votação afinal estavam ausentes. Tal como não parece aceitável, à luz dos princípios estruturantes de uma democracia representativa dos nossos dias que a ausência de alguns Deputados no estrangeiro em missão oficial da Assembleia da República possa determinar, no momento de votação de uma lei, a inversão da maioria política parlamentar que resultou da escolha popular."
"Como sempre tem acontecido desde praticamente o início do funcionamento da Assembleia da República, não há, em geral, quaisquer, indicações que permitam verificar a existência de quorum deliberativo, nas comissões e em plenário, ou o número de votos efectivamente obtido pelos decretos enviados para promulgação como lei e respectivas disposições, seja no que respeita à votação final global seja às votações na especialidade. Há, assim, um perigo de incerteza jurídica tanto mais elevado quanto a Constituição exige, em determinados casos, a aprovação por maiorias qualificadas, pelo que, nessas circunstâncias, a possibilidade de um conhecimento preciso daqueles dados é condição de verificação da regularidade do processo legislativo parlamentar e de determinação da validade de algumas leis e das suas eventuais alterações."
Os cinco pareceres dos constitucionalistas chegam a diferentes conclusões sobre a admissibilidade do voto por bancada e eventuais alterações ao regimento, mas todos parecem consensuais na rejeição do método, até então vigente, de usar os "levantados e sentados" para as votações que exigem uma maioria qualificada. Socorrendo-me da síntese feita por Ana Vargas e Laura Lopes Costa em O Parlamento Na Prática (Assembleia da República, 2008):
Acrescente-se ainda, claro, a opinião do professor Marcelo Rebelo de Sousa, também ele constitucionalista.
A alteração ao Regimento da Assembleia da República de 2003 é das mais extensas à qual o regimento foi sujeito. Entre as múltiplas alterações, consagrou-se o método de votação eletrónica para as votações que exigem maioria qualificada, bem como o aumento das situações em que um requerimento de pelo menos 10 deputados dá origem a um processo de votação nominal; o regimento passou também a consagrar no artigo 92.º (antes o 101.º) que "as deliberações são tomadas à pluralidade de votos, com a presença da maioria legal de Deputados em efetividade de funções, previamente verificada por recurso ao mecanismo eletrónico de voto e anunciada pela Mesa, salvo nos casos especialmente previstos na Constituição ou no Regimento". Outras sugestões, como as feitas pelos professores Galvão Teles e Jorge Miranda para os votos dos deputados ausentes em missão parlamentar, não foram aceites.
A Assembleia da República não se encontrava tão politicamente fracionada desde os anos 80 - e se as sondagens mais recentes projetam a possibilidade de uma maior concentração futura de deputados no grupo parlamentar do PS em prejuízo das bancadas do PSD e CDS-PP, nada indica que o cenário de divisão multipolar regrida para visões passadas do Plenário. Esta uma realidade que o próprio parlamento se está a ajustar, inclusive na saudável inclusão nos trabalhos na maior extensão possível do deputado que, tendo sido eleito numa lista partidária autónoma, não pôde constituir grupo parlamentar (PAN). E esta realidade convive com uma sociedade portuguesa cada vez mais exigente (e, diria, saudavelmente mais interessada) nos trabalhos do seu parlamento nacional. Tal situação acarreta desafios na forma que certos "costumes" são aplicados aos dias de hoje - afinal, quantos não foram aqueles que em 2015 acusaram o parlamento de contrariar a sua tradição ao não atribuir a presidência da Assembleia da República à força política que mais deputados elegeu?
O Hemiciclo é absolutamente neutro e respeita integralmente a posição e interpretação assumida pela Mesa da Assembleia. Mas eu, pessoalmente, não sou - e, como tal, revejo-me integralmente no parecer e soluções propostas pelo professor, ex-deputado e deputado constituinte Jorge Miranda em 2002. Se já me perturba que o "sair da sala para não votar" seja um posição política admissível e invariavelmente inconsequente, mais me incomoda que se parta do princípio automático de que quem está ausente concorda sempre com a posição maioritária do respetivo grupo parlamentar. Percebo a lógica da interpretação vigente, mas não a posso subscrever.
Depois de ter andado a resmungar, e para ser mais fácil fazer posts deste género, onde possamos perceber como votaram os nossos representantes democraticamente eleitos, nasceu uma nova casa:
Usem e abusem.
PS: o valupi é grande.
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