Alta Velocidade, perdão, Altas Prestações
A polémica da passada semana sobre a suposta construção de uma linha de alta velocidade, perdão, de altas prestações entre Évora e Mérida mostra bem a irracionalidade da discussão sobre o investimento em infraestruturas ferroviárias (e não só) em Portugal.
A coreografia já não é novidade. Começa com uma menção com origem em Bruxelas a um qualquer projecto de alta velocidade ferroviária em Portugal. De seguida, há um título num qualquer jornal, habitualmente em tom hostil, denunciando o facto de o governo estar a avançar com o “TGV”, sigla maldita por este canto da Europa. Termina, poucas horas depois, com um esclarecimento vindo do ministério do planeamento negando tratar-se de uma linha de alta velocidade, mas antes de “altas prestações para mercadorias”.
No caso concreto da nova linha Évora – Elvas, cujos concursos públicos já estão em andamento, e que tem sido o motivo destas polémicas, uma consulta aos elementos do projecto publicamente disponíveis revela que se trata de uma linha de comboio em via dupla com uma velocidade de projecto de 250 km/h. Numa primeira fase, a linha será construída em via única e em bitola ibérica, mas os trabalhos de construção civil deixá-la-ão preparada para a duplicação e transição para a bitola europeia. Também ficamos a saber que o projecto foi feito tendo em conta que esta linha fará parte da futura linha de alta velocidade Lisboa – Madrid e de forma a não comprometer um tempo de viagem inferior a 3 horas. Importa acrescentar que uma linha feita para tráfego exclusivo de mercadorias, como se insinua ser o caso desta, não teria uma velocidade de projecto de 250 km/h, já que estes comboios circulam, no máximo, a 120 km/h.
A definição de alta velocidade ferroviária na UE é dada pela directiva 96/48/EC e inclui linhas novas para velocidades iguais ou superiores a 250 km/h e linhas existentes modernizadas para velocidades iguais ou superiores a 200 km/h. Ora, não só a nova linha Évora – Elvas é, inequivocamente, uma linha de alta velocidade, como também o são os troços modernizados da linha do Norte ou a linha entre Casa Branca e Évora.
A directiva 96/48/EC estabelece critérios semelhantes para o material circulante, pelo que o Alfa Pendular é, para todos os efeitos, um serviço de alta velocidade. O facto de, neste momento, o transporte aéreo ser o seu principal concorrente no eixo Lisboa – Porto é sintoma disso mesmo.
O que está em causa é apenas uma questão semântica, a “alta velocidade” e as “altas prestações” ou “alto desempenho” são uma e a mesma coisa. O facto de circularem mais ou menos comboios de passageiros ou de mercadorias é irrelevante. Não será a primeira linha de alta velocidade para tráfego misto.
O que não deixa de me causar perplexidade é que o comboio de alta velocidade mantenha no espaço público português um estatuto pecaminoso, como se tratasse de algo que nos está vedado sequer considerar. Com a, para mim, surpreendente resiliência deste “tabu”, continua a perder a racionalidade e a inteligência do debate sobre investimento público em infraestruturas em Portugal.