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365 forte

Sem antídoto conhecido.

Sem antídoto conhecido.

11
Mar15

Suspenda, sem constrangimentos

David Crisóstomo

Volti-meia, isto é um tema que volta. Qual Prós e Contras genérico, volti-meia certos deputados de certos partidos acham que está na altura de se remexer no Estatuto dos Deputados à Assembleia da República, de forma a actualiza-lo, a inserir mais uns "requisitos exigentes", nas palavras dos deputados PCP, para responder à "exigência democrática", nas palavras dos deputados do Bloco de Esquerda. Desta vez tivemos direito a três projectos de lei, um de deputados do PS, outro de deputados do PCP e outros de deputados do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda. Há propostas interessantes e boas medidas em todos. Há também propostas e medidas que se calhar nunca deviam ter saído da mente do proponente. 

 

Debruço-me agora aqui sobre a ideia dos deputados do Bloco de Esquerda de retomar a "rotatividade dos parlamentares". Isto soa bem, não é? Quem é que não quer "rotatividade dos parlamentares"? Ninguém deseja ver as mesmas caras nos mesmos sítios por séries infindáveis de mandatos de 4 anos, ainda por cima quando o trabalho que produziram nessa imensidão temporal é deveras questionável (sim Miranda Calha, estou a olhar para ti). Todavia, ao lermos o emaranhado legal do projecto de lei do Bloco de Esquerda entendemos mais concretamente como se realiza, na prática, essa "rotatividade": o BE não deseja impor um limite de mandatos para os deputados à Assembleia da República, de modo a poder haver uma "rotatividade de lugares"; não senhor, o Bloco quer poder "rodar" os "seus deputados" (este uso de pronomes possessivos para mandatos eleitorais é giro) ao longo da própria legislatura, como aparentemente fazia até 2008, através duma faculdade que era permitida aos deputados e que desde então se tornou mais "exigente" - a suspensão de mandato.

A suspensão de mandato e a consequente "substituição temporária do deputado" é uma possibilidade que o Estatuto dos Deputados da Assembleia da República dá actualmente aos parlamentares daquela câmara caso:

  • o deputado seja alvo de um procedimento criminal e a Assembleia da República delibere a suspensão da sua função parlamentar (no caso do procedimento criminal ser por um crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos e em flagrante delito a suspensão de mandato é obrigatória, tal como está previsto na Constituição);
  • o deputado tome posse como membro do Governo, Representante da República nas Regiões Autónomas, membro de um Governo Regional (não se percebe bem porque motivo é dada esta possibilidade a um Representante da República quando ela é explicitamente vedada ao Presidente da República), embaixador externo à carreira diplomática (como Ferro Rodrigues na OCDE ou Manuel Maria Carrilho na UNESCO), governador ou vice-governador civil (bem, isto já não existe, mas enfim; ironicamente, em nenhum dos três projectos de lei se propõe suprimir esta alinha), funcionário do Estado ou de outra pessoa colectiva pública (o caso de Miguel Frasquilho, por exemplo, que suspendeu o mandato para ir para administrador da AICEP [ver adenda no fim do post]) ou caso seja nomeado para um alto cargo ou função internacional (se for impeditivo do exercício do mandato parlamentar), bem como funcionário de organização internacional ou de Estado estrangeiro (como Durão Barroso, entre 2004 e 2005, quando já era Presidente da Comissão Europeia [sim, ele renunciou ao cargo de primeiro-ministro mas nunca renunciou ao mandato de deputado]);
  • o deputado veja diferido o seu pedido de suspensão por "motivo relevante", que o presente estatuto delimita como podendo ser uma de três razões: doença grave que envolva impedimento do exercício das funções por período não inferior a 30 dias nem superior a 180; exercício da licença por maternidade ou paternidade; necessidade de garantir seguimento de um processo criminal de que o deputado tenha sido alvo;

Ora, é precisamente nesta última razão para a suspensão de mandato, no "motivo relevante", o artigo 5º do Estatuto dos Deputados, que o Bloco de Esquerda quer mexer, de modo a acrescentar-lhe três novas alinhas:

especificas.png

 

Dando de barato a nova alínea d), que se compreende dada a exclusividade de funções que os deputados do BE pretendem impor aos membros do parlamento nacional (um outro debate, para um outro post), não posso deixar de destacar as alíneas e) e f), principalmente a das "Razões importantes relacionadas com a vida e interesses do Deputado" - ou seja, o que o senhor deputado achar importante para a vida lá dele e para os interesses que ele lá tenha. O Bloco de Esquerda propõe assim que retrocedamos na exigência que damos aos nossos representantes eleitos para que lhes concedamos a possibilidade de, quando entenderem e por qualquer justificação (aquela alínea dá para tudo), poderem simplesmente baldarem-se durante uns tempos ao compromisso eleitoral que fizeram; poderem decidir abandonar as suas funções de deputado no parlamento da República Portuguesa temporariamente para irem fazer o que quiserem, sem nunca abandonar o posto parlamentar que detêm. Tudo porque aparentemente a direcção do Bloco acha que os lugares na Assembleia da República, que serão cada vez menos, devem estar disponíveis para o maior número possível de camaradas em lista, para que todos tenham a sua "oportunidade", como se o posto de deputado servisse exclusivamente como uma espécie de estrado, como um palco onde todos os candidatos do Bloco pudessem demonstrar a sua genialidade, viessem eles em 1º ou em 38º lugar na lista.

Eu fiquei perplexo com esta ideia, ainda por cima dada a excessiva permissividade que, a meu ver, já existe no actual regime da suspensão de mandato. Acho surreal que todos achemos normal haver esta figura do "deputado substituto", que entra quando um dos seus camaradas de lista decide assumir outras funções mas que não quer abdicar da segurança de poder confortavelmente voltar ao Palácio de São Bento. Causa-me particular impressão ver a quantidade de deputados que estão em regime "efectivo temporário", a maioria a "guardar o lugar" dos detentores que a eles não renunciaram quando assumiram funções no Governo (yup, o Hugo Soares é um desses, de momento a "ocupar" o lugar do actual Secretário de Estado do Desporto):

 

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E se muitos deputados "temporários" acabam por sê-lo a legislatura inteira, existem casos de outros que, subitamente, vêem-se obrigados a interromper todo o trabalho parlamentar que estariam a desenvolver para poder dar lugar aos "legítimos detentores" do lugar que ocupam, que decidiram voltar a ocupar os assentos na Assembleia da República. Exemplos mais recentes disso foram os deputados Isidro Araújo (PSD) e Vera Rodrigues (CDS-PP), que tiveram que abdicar dos seus postos como representantes populares para dar lugar, respectivamente, a Miguel Macedo e Cecília Meireles que, fartos do XIX Governo Constitucional, optaram por tomar posse dos lugares a que nunca tinham renunciado (a Vera Rodrigues retornou entretanto ao parlamento por via da ascensão do deputado João Almeida a Secretário de Estado da Administração Interna).

Se admito que possam haver situações onde um deputado não possa simplesmente continuar com o seu trabalho parlamentar devido a um impedimento temporário mas de longa duração (doença prolongada, licença de maternidade/paternidade e procedimento criminal), já tenho muita dificuldade em admitir que aceitemos que um deputado em funções deixe pendente indefinidamente a função para a qual foi eleito para assumir uma outra função pública mais do seu agrado - nada contra que o façam, mas sou particularmente intolerante aos que, em vez de renunciar, limitam-se a suspender o mandato, como quem trata a Assembleia da República como uma "rede de segurança" para um possível declínio futuro. Caraças, se até para a "doença prolongada" o estatuto impõe um limite de 180 dias para o mandato suspenso, como é possível admitir-se esta suspensão sem termo aparente?

Dito isto, ainda mais intolerante sou à figura do "deputado de substituição", qual representante eleito suplente, que entra e sai conforme as necessidades dos seus colegas de facto eleitos. Como resolver o problema dos motivos para suspensão de mandato que não o "vou ali tomar posse noutro sítio"? Não se resolve, deixa-se o lugar vago, tal como acontece quando o deputado falta, justificadamente ou não. Tal como acontece no Parlamento Europeu, onde não existe esta figura legislativa. 

É assim para mim lamentável ver o Bloco de Esquerda, que enche a boca com a "credibilização da vida democrática", vir propor um aumento do laxismo com que certos eleitos tratam a Assembleia da República, vir propor que os deputados tenham a possibilidade de se marimbarem na sua posição durante largos períodos sem nenhuma razão justificável, vir propor que haja parlamentares que possam deste modo destratar o mandato que lhes foi democraticamente confiado por "razões importantes relacionadas com a vida e interesses". Razões importantes é infelizmente o que começa a não faltar para explicar o decadente estado onde grande parte do Bloco de Esquerda se encontra.

 

Adenda: Ao contrário dos deputados do Bloco de Esquerda, o projeto de lei do PS propõe, através de um acréscimo nas incompatibilidades, uma restrição das possibilidades de "suspensão de mandato" - que impediria, por exemplo, Miguel Frasquilho de ser dirigente da AICEP sem renunciar ao seu mandato de deputado. Uma alteração insuficiente, a meu ver, mas é um começo:

adenda.png

 

«As circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.»
- Ortega y Gasset

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