A consciência de Ulisses Pereira
"Participar nas votações" é um dos deveres dos membros da Assembleia da República, como frisa a alínea c) do n.º1 do artigo 14º do Estatuto dos Deputados. Mais, é também um dever consagrado na Constituição da República Portuguesa, na alínea c) do seu artigo 159.º. Não estamos, portanto, perante um mero direito que pode ser abdicado de forma leve - é uma obrigação prevista na lei fundamental da República.
Atentemos a este excerto do momento em que se inicia o processo de votações às alterações ao Decreto da Assembleia 196/XIII, vetado pelo senhor Presidente da República, e sobre o qual regressou o dilema manifestado também em março passado:
Ora bem, à semelhança do que já tinha acontecido nas votações na generalidade e final global, também nas votações no âmbito da reapreciação do decreto houve vários parlamentares que tiveram a necessidade de fazer declarações de interesses, ao abrigo do artigo 27º do Estatuto dos Deputados:"Os Deputados, quando apresentem projecto de lei ou intervenham em quaisquer trabalhos parlamentares, em comissão ou em Plenário, devem previamente declarar a existência de interesse particular, se for caso disso, na matéria em causa". Tal sucedeu com António Lima Costa, por exemplo. Mas nesta votação testemunhou-se também a inusitada posição de Ulisses Pereira, que escolhe invocar não o referido artigo 27.º do Estatuto dos Deputados, mas o n.º3 do artigo 8.º (referente à situação da Perda de Mandato), que explicita:
"a invocação de razão de consciência, devidamente fundamentada, por Deputado presente na reunião é considerada como justificação de não participação na votação".
Nas votações anteriores deste processo legislativo, Ulisses Pereira nunca tinha declarado qualquer eventual interesse particular. Todavia, na da passada sexta-feira, optou por decretar à câmara que não participaria naquelas votações. Como se pode observar, Jorge Lacão, o presidente da AR em exercício (em virtude da baixa de Ferro Rodrigues por motivos de saúde), bem tenta explicar ao deputado social-democrata que seria útil que fosse um pouco mais claro na fundamentação sobre as suas razões, mas mais não consegue mais do que umas vagas declarações de Ulisses Pereira sobre as matérias que alegadamente estariam na origem da declaração que teria enviado aos serviços de apoio ao Plenário. Jorge Lacão desiste, toma nota, e o processo continuou.
Todavia, não estou certo que devia ter continuado.
A verdade é que esta faculdade parlamentar tem sido raramente invocada - aliás, só há registo de em outras duas ocasiões ter sido utilizada explicitamente em Plenário: por Vera Jardim para em 2010 não votar o voto de condenação pelas ações levadas a cabo pelo Governo francês que visaram a expulsão de cidadãos ciganos e por Jamila Madeira no ano passado, que tentou invocar esta possibilidade (conjuntamente com o artigo referente aos conflitos de interesses) aquando de uma deliberação agendada (que acabou por não se realizar) para não votar um conjunto de projetos de resolução referentes ao setor energético ("por razão de consciência e por eventual conflito de interesses, declaro que não participarei na votação"); em 2009, o então Presidente Jaime Gama interpretou a recusa de Zita Seabra, Regina Bastos e Henrique Rocha Freitas de votar o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico como também tendo sido motivada por "razões de consciência", ainda que nenhum dos três o tenha proclamado na sessão plenária. Em todos os casos, e à semelhança deste, a expressão "devidamente fundamentado" parece ter sido ignorada, pois nenhum tentou justificar adequadamente realidade que constrangia alegadamente a sua consciência (e, ao contrário do que se passou na última semana, sem nenhuma tentativa da Mesa da Assembleia para tentar obter o esclarecimento legalmente exigido).
Como o vídeo demonstra, o deputado Ulisses Pereira claramente não apreciou a insistência do Presidente em obter explicações sobre a sua invocação de "razões de consciência" para se escusar de cumprir o seu dever parlamentar. Ao primeiro pedido de Jorge Lacão, o deputado social-democrata explica: "Compreendo que estar a justificar razões da nossa consciência, naturalmente que é um exercício difícil, mas eu fá-lo-ei, já o fiz através da declaração que enviei aos serviços [de apoio ao Plenário] com uma conjugação de uma série de factores que têm a ver com questões de ordem pessoal, que têm que ver com questões de ordem política, que têm que ver com questões de ordem de disciplina de voto. Portanto, foi um conjunto dessas questões. Se for outro entendimento da Assembleia, naturalmente que me retirarei e não votarei da mesma forma". O Presidente, não satisfeito com clara ausência da fundamentação devida, esclarece que a sua exigência legal é "para que se compreenda, não [para] sindicar a consciência do senhor deputado, mas [para] que seja transparente a fundamentação dessa invocação para não participar numa votação. O senhor deputado esclareceu que emitirá essa fundamentação para efeitos de registo. Ora, o que aqui se diz é que a fundamentação deve ocorrer estando o deputado presente na reunião em que se coloque. O senhor deputado invoca motivos de ordem pessoal - senhor deputado, obviamente que a Mesa jamais o faria, não tutela a consciência de nenhum deputado. O senhor deputado considera que limitando-se a uma clausula geral de ordem pessoal fica devidamente fundamentada a questão de consciência?". A inquirição final do Presidente é rebatida pelo parlamentar de forma muito singela: "eu não gostaria de entrar no detalhe das questões que invocam a minha consciência, mas se for preciso também irei lá", e Lacão conclui então a questão com um "vou deixar isso ao seu critério e depois peço-lhe que pondere as razões da lei sobre a fundamentação devida".
Jorge Lacão fez bem em insistir. "Devidamente fundamentado" não é uma expressão que tenha sido inserida no artigo em questão com um significado equivalente a "diga assim por alto o porquê da coisa". Em 2009, o Supremo Tribunal Administrativo defendia que "a fundamentação é, como a jurisprudência e a doutrina têm repetidamente afirmado, um requisito formal do acto que varia em função do seu tipo legal, a qual se destina a responder às necessidades de esclarecimento do seu destinatário. Deste modo, pode afirmar-se que o acto está fundamentado sempre que o seu destinatário fica devidamente esclarecido acerca das razões que o motivaram, isto é, sempre que o mesmo exponha com suficiência e clareza as razões de facto e de direito que conduziram à sua prática, revelando desse modo o seu iter cognoscitivo e valorativo (...)". E como o Presidente indicou, estamos também no domínio do escrutínio e da transparência - não é apenas o Plenário que tem o direito a conhecer as razões que levam a que um deputado suspenda momentaneamente o seu dever constitucional, é também obviamente um direito que assiste ao cidadão representado.
O deputado Ulisses Pereira manifestou um claro aborrecimento e incómodo por ter que explicar porque tinha decidido que o seu dever de participar nas votações poderia ser dispensado naquela altura, revelando a "ordem das questões" que motivaram então a sua consciência. Mas mesmo no domínio das ditas "ordens", há duas em que não se compreende o embaraço do senhor deputado: nas questões de ordem política e nas de ordem de disciplina de voto. Na primeira, parece-me óbvio: desde quando é que não se expõem as questões políticas que motivam (e condicionam) um determinado sentido de voto? Não cai, nem nunca caiu, sobre matérias de ordem eminentemnte política nenhum manto de secretismo; na segunda, é mais simples - o conceito de "disciplina de voto" é uma matéria da vida interna do grupo parlamentar a que o deputado pertence e que não tem qualquer reconhecimento regimental, estatutário ou constitucional (n.º 1 do artigo 155º e n.º 1 do artigo 157º da CRP), pelo que sendo o deputado livre de definir o seu voto sobre os critérios que bem entender, não existe todavia qualquer proteção especial para o critério da "disciplina de voto". No que diz respeito às questões de "ordem pessoal", será de facto uma matéria externa a vida pública e política e que só ao deputado dirá respeito - exceto quando tais questões entram num aparente conflito com os deveres do representante eleito da população à Assembleia da República - nesse caso, lamento imenso, mas sim, faça favor de no mínimo detalhar um pouco mais porque motivo as suas questões pessoais o isentam das obrigações a que escolheu estar sujeito quando tomou posse.
Não discordando da premissa que caberá sempre ao deputado a palavra final sobre o que entrará ou não em conflito com sua consciência, importa sublinhar também que "razões de consciência" não é uma formulação indefinida onde pode caber todo e mais algum motivo para desobrigar um parlamentar de exercer o seu mandato popular. Ainda que introduzida no Estatuto dos Deputados em 2003, é justo considerar que esta exceção é sucessora de outra que existiu no mesmo artigo do Estatuto entre 1993 e 2001 e que dizia no seu n.º 3 que "em casos excepcionais, as dificuldades de transporte podem ser consideradas como justificação de faltas, bem como a invocação prévia da objecção de consciência" - e objeção de consciência é um conceito onde com certeza não caberão "questões de ordem de disciplina de voto". E acresce que fiquei algo curioso sobre as razões políticas ou pessoais que, numa matéria referente à regulamentação profissional dos atos de arquitetos e engenheiros, possam entrar em conflito com motivos de ordem religiosa, moral, humanística ou filosófica do deputado.
Não sabemos (ou eu não sei, pode ser que quem fosse vivo e maior de idade à época se recorde) as razões dos legisladores quando nas duas ocasiões decidiu criar esta exceção ao dever de participar nas votações no Estatuto dos Deputados [em ambos os processos legislativos esta disposição parece ter sido introduzida no processo da especialidade, sem se definir o(s) autor(es) e a(s) sua(s) intenção(ões), não estando disponível online os relatórios dos processo da especialidade que nos esclareçam sobre este aspeto]. Contudo, parece-me altamente questionável que tenham introduzido esta possibilidade para permitir que os deputados se escusassem de votar matérias com as quais tenham visões opostas ao da maioria do seu grupo parlamentar ou onde pudessem ter um eventual interesse particular, profissional ou não.
Um cidadão quando se candidata à função de deputado à Assembleia da República está a manifestar a intenção de assinar um contrato com os cidadãos, comprometendo-se a representa-los e a legislar em seu nome consoante a sua interpretação e visão da sociedade e do programa político que acompanhou a sua eleição. Existindo porventura motivos que impeçam um deputado de participar em votações (a sua ausência da sessão plenária, por exemplo), o dever mantém-se como imperativo quando o deputado está presente e pertence ao quórum que compõe o parlamento naquela sessão de votações. O Estatuto dos Deputados concede uma hipótese para situações altamente excecionais onde este dever pode ser suspenso temporariamente face a uma votação que origine um conflito com a consciência do parlamentar. Face a esta realidade, o mínimo que o deputado pode fazer face aos eleitores que representa é, cumprindo o disposto no Estatuto, apresentar uma fundamentação que nos permita eventualmente compreender a sua decisão. Caso contrário, o cidadão fica perante um ato inescrutável de um daqueles que se comprometeu a agir em seu nome. E é bom que se tenha isto presente na consciência.