Quid iuris?
"O direito penal começa precisamente lá onde acaba a vingança."
Giuseppe Bettio
Nas mais recentes discussões sobre decisões judiciais existe um legítimo desagrado e incompreensão sobre o instituto da suspensão de execução da pena. Para qualquer pessoa parece chocante, no mínimo, que alguém condenado, sobretudo pela prática de crimes tão graves como abuso sexual, não chegue a cumprir qualquer parte da pena.
No entanto, não é possível analisar este instituto sem previamente conhecer resumidamente (e com o mínimo rigor, sem torná-lo demasiado técnico) as diversas teorias dos fins das penas. Esta questão central tem preocupado gerações de penalistas, que têm produzido diversas teorias ao longo dos anos:
- a teoria da retribuição: a pena surge como um imperativo categórico. Como resposta ao acto criminoso é necessário um castigo. Assim, a culpa do agente é o fundamento e limite da pena. Esta teoria foi criticada por diversas razões: não é possível provar a existência de livre-arbítrio (o que impossibilita a prova da culpa como fundamento da pena); o castigo não repara o acto praticado; a incompatibilidade de certos crimes associados a psicopatias poderem sofrer uma pena face à inexistência ou, pelo menos, reduzida culpa.
- a teoria da prevenção geral: a pena surge para "avisar" a sociedade da relevância do bem jurídico atacado, prevenindo que tal comportamento se repita. As principais críticas podem ser resumidas a três pontos: 1) a instrumentalização do condenado, que seria usado como meio de atemorizar outros; 2) há determinados crimes que a sociedade já considera relevantes, diminuindo a necessidade de "avisar" que certo comportamento é errado; 3) ausência de base empírica para indicar que uma determinada pena tem um efeito intimidante (por ex: pena de morte).
- a teoria da prevenção especial: a pena traduz-se na protecção da sociedade relativamente ao criminoso, evitando a sua reincidência. Neste caso o foco não estaria no acto cometido, mas na perigosidade do agente. Também esta teoria foi criticada: parte, na sua versão mais radical, de um pressuposto determinista em que o criminoso nunca teria outro comportamento, sendo necessário que a sociedade se proteja.
A legislação portuguesa, não dando uma resposta conclusiva, nem seria esse o seu papel, procura unir as diversas teorias. Parte da prevenção, geral e especial, "a aplicação da pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade", sendo a culpa o limite inultrapassável da pena (a retribuição é assim o seu limite). A pena surge não como castigo nem reparação do mal, mas como reforço da validade da norma que foi quebrada.
Por sua vez, decidida então a pena, é necessário ponderar se a sua suspensão permite cumprir os requisitos da prevenção especial. Ou seja, após a determinação da pena, e apenas após esse momento, é ponderado se a reintegração do agente na sociedade é alcançável com a simples censura do facto e ameaça da prisão. evitando, assim, a reincidência do comportamento criminal. Procura-se, a todo o custo, evitar os efeitos nefastos e contraproducentes da supressão da liberdade que atingem não só o agente, mas também o seu núcleo familiar e a sociedade em geral. Verifica-se, portanto, que o legislador privilegia, sempre que possível, as penas não restritivas de liberdade ou a suspensão da sua execução. Com efeito, em 2007, o legislador aumentou o alcance deste instituto ao alargar os casos em que a suspensão pode ser aplicada para penas de prisão até 5 anos.
Será esta a opção mais justa? Será que se deve vedar a suspensão da execução da pena a determinados crimes? Mas ao tomar esta opção não haveria um regresso encapotado à teoria retributiva (o que seria um retrocesso civilizacional)? Será possível mudar a percepção pública que equivale a suspensão da execução da pena à absolvição? E qual a melhor forma de o fazer? Estas questões são complexas e o seu debate carrega uma elevada carga emocional, sobretudo porque a nossa perspectiva assume sempre o lugar da vítima e rapidamente se perde o objecto da discussão. No entanto, o pior que a Justiça no seu todo pode fazer é entrincheirar-se e assumir uma postura defensiva perante as inquietações que estas situações despoletam. É necessário dialogar.