Passos em volta
Eu tenho um amigo (neste caso é mesmo amigo e não aquele recurso manhoso para se falar da própria experiência) que durante alguns anos como trabalhador independente não procedeu ao pagamento das contribuições à Segurança Social. O dinheiro não abundava por isso tomou a opção de não pagar, sem que alguma vez tenha deixado de ter consciência da sua falha, tanto é que durante esses anos uma das suas resoluções de fim de ano era a liquidação dessa dívida. Entretanto arranjou um emprego com contrato de trabalho o que lhe permitiu alcançar um acordo de regularização da sua situação com a Segurança Social, que a custo tem vindo a cumprir.
Serve este pequeno intróito para explicar que o não pagamento das contribuições à Segurança Social não é socialmente aceitável, como alguns nos querem fazer acreditar, mas também não é uma falha hedionda e irrecuperável de carácter. Não considero o meu amigo menos ético por causa daquele incumprimento, nem acho que isso o impossibilite, caso ele algum dia quisesse, de exercer algum cargo público.
Ora, no caso do Primeiro-Ministro existe uma diferença crucial que este e o seus defensores não entendem ou preferem ignorar: o contexto político e as responsabilidades que daí advêm; não é um problema pessoal, mas politico, uma vez que a sua autoridade como tal está ferida de morte.
Passos Coelho apresentou-se às eleições com promessas de fim da austeridade: não era necessário nem cortes de salários nem aumento de impostos, que tudo se iria resolver simplesmente com a eliminação das gorduras do Estado.
Para sustentar politicamente o incumprimento dessas promessas, o Primeiro-Ministro criou uma imagem de homem honrado, uma "raça de homem" que cumpre, custe o que custar, com as suas obrigações, austero, que vive de acordo com as suas possibilidades, que nem às filhas oferece prendas na época natalícia.
Ao mesmo tempo, o seu governo desceu o limite a partir do qual as dívidas à Segurança Social se tornam fraude, o que caso das pessoas singulares pode significar uma pena de prisão até três anos ou uma multa até 180 mil euros; dificultou o acesso e diminuiu o valor dos vários apoios prestados pela Segurança Social; e colocou em causa o próprio sistema colocando dúvidas sobre a sua sustentabilidade.
Esta incongruência entre o discurso e actuação política e o comportamento de Passos Coelho - o não pagamento durante cinco anos das contribuições à Segurança Social e a manutenção dessa situação após a notificação de 2012 - levaria num país qualquer à sua demissão.
Por outro lado, num país qualquer Crato, Maria Luís Albuquerque, Paula Teixeira da Cruz e Machete também já não fariam parte de um governo.