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365 forte

Sem antídoto conhecido.

Sem antídoto conhecido.

12
Mai14

Os homens em delírio apalpam as mulheres delirantes

Nuno Oliveira

Podia fazer-se um qualquer jogo de palavras versando sobre a humanidade das bestas em contraponto à bestialidade dos humanos. Mas como sobre as misérias humanas escreve Saramago de forma absolutamente sublime, aqui se deixa um excerto para alertar que mais logo temos Prós e Contras sobre a tourada:

 

Entrou o primeiro touro, entrou o segundo, entrou o terceiro, vieram os dezoito toureiros de pé que o Senado contratou em Castela a peso de muito dinheiro, e os cavaleiros saíram à praça, espetaram as suas lanças, e os de pé cravaram dardos enfeitados de papéis recortados, e aquele cavaleiro a quem o touro desfeiteou, fazendo-lhe cair o manto, atira o cavalo contra o animal e fere-o à espada, que é o modo de vingar a honra manchada. E entram o quarto touro, o quinto, o sexto, entraram já dez, ou doze, ou quinze, ou vinte, é uma sangueira por todo o terreiro, as damas riem, dão gritinhos, batem palmas, são as janelas como ramos de flores, e os touros morrem uns após outros e são levados para fora numa carroça de rodas baixas puxada a seis cavalos, como só para gente real ou de grande título se usa, o que, se não prova a realeza e a dignidade dos touros, está mostrando quanto eles são pesados, digam-no os cavalos, aliás bonitos e luzidamente aparelhados, encabuzados de veludo carmesim lavrado, com as mantas franjadas de prata falsa, assim como as cabeçadas e cobertas de pescoço, e lá vai o touro crivado de flechas, esburacado de lançadas, arrastando pelo chão as tripas, os homens em delírio apalpam as mulheres delirantes, e elas esfregam-se por eles sem disfarce, nem Blimunda é excepção, e por que havia de o ser, toda apertada contra Baltasar, sobe-lhe à cabeça o sangue que vê derramar-se, as fontes abertas nos flancos dos touros, manando a morte viva que faz andar a cabeça à roda, mas a imagem que se fixa e arrefece os olhos é a cabeça descaída de um touro, a boca aberta, a língua grossa pendendo, que já não ceifará áspera, a erva dos campos, ou só os pastos de fumo do outro mundo dos touros, como haveremos de saber se inferno ou paraíso.

 

Paraíso será, se justiça houver, nem pode haver inferno depois do que sofrem estes, os das mantas de fogo que são umas capas grossas, em camadas, recheadas de várias ordens de foguetes, e pelas duas pontas delas se lhes chega o lume, e então começa a manta a arder, e os foguetes rebentam, por largo espaço vão rebentando, estouram e resplandecem por toda a praça, é como assar o touro em vida, e assim vai o animal correndo o terreiro, louco e furioso, saltando e bramindo, enquanto D. João V e o seu povo aplaudem a mísera morte, que nem o touro, ao menos, se pode defender e morrer matando. Cheira a carne queimada, mas é um cheiro que não ofende estes narizes, habituados que estão ao churrasco do auto-de-fé, e ainda assim vai o boi ao prato, sempre é um final proveito, que do judeu só ficam os bens que cá deixou.

 

in Memorial do Convento

«As circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.»
- Ortega y Gasset

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