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365 forte

Sem antídoto conhecido.

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09
Jan15

O ódio

Sérgio Lavos

L'esquive- les filles.jpg

À hora que escrevo, os dois suspeitos (continuam a ser suspeitos, porque não chegou a haver julgamento) da execução pública dos jornalistas do Charlie Hebdo foram cercados e mortos pela polícia. Um terceiro assaltante também foi morto, depois de ter feito reféns num supermercado kosher, tendo acabado por matar quatro pessoas. Já passaram mais de cinquenta horas desde que começaram a sair as primeiras notícias sobre o hediondo assalto à redacção da publicação francesa. Diria antes: passaram-se apenas cinquenta horas desde que dois homens encapuzados e armados de kalashnikovs entraram na redação do Charlie Hebdo e decidiram executar, a sangue-frio e depois de os chamarem pelo nome, doze funcionários da publicação, tendo feito mais dois mortos pelo caminho, polícias, um deles muçulmano.

Apenas cinquenta horas se passaram, mas parece que dias, semanas, correram. A velocidade da informação é tanta, que neste lapso de tempo mil e uma histórias sobre os assassinos foram conhecidas, inúmeras teorias tecidas, factos sobre o passado revelados. O Facebook e sobretudo o Twitter aceleraram, misturando opinião e informação em doses iguais, alternando entre comunicados das agências noticiosas, reportagens em directos das TV's, citações de personalidades conhecidas e meras opiniões de utilizadores anónimos, mais ou menos replicadas pela rede fora. Como é natural, rapidamente as opiniões se extremaram, as pessoas tomaram partido, e por baixo da aparente unanimidade se começaram a cavar trincheiras. A violência real dos terroristas foi copiada por alguma violência virtual. O consenso aparente foi plasmado pela uso da hashtag #JeSuisCharlie, que se tornou a mais popular de sempre. E a multiplicação da hashtag e do pesar colectivo foi esvaziando a enormidade do acontecimento inicial. A execução, que tudo indica ter sido planeada para ser um espectacular acontecimento mediático, está lá, distante, a apenas trinta horas, mas entretanto tornou-se quase irreal, um acontecimento tão inverosímil como o foi, por exemplo, o 9/11.   

Vamos então desacelerar o tempo. E pensar no momento em que um grupo de jovens franceses, descendentes de magrebinos (no caso do raptor do supermercado, descendente de imigrantes da África subsariana), decidiu matar jornalistas de uma publicação satírica e algumas pessoas num supermercado. Ou então voltar atrás no tempo, e apanhá-los no momento em que tomaram contacto com algum clérigo radical do Islão que os conduziu ao caminho que agora percorrem. Ou então ainda, capturá-los na adolescência, quando em qualquer escola dos subúrbios aspirariam talvez a ser mais do que acabaram por se tornar. Poderiam ser os adolescentes que Abdellatif Kechiche retrata em A esquiva, perdidos entre os problemas normais daquela idade, tentando encontrar a normalidade enquanto ensaiam uma peça de Marivaux, um dos mais importantes dramaturgos do país que acolheu os seus pais. Poderiam ser também os adolescentes problemáticos de O ódio, de Mathieu Kassovitz, jovens pressionados pela marginalidade dos subúrbios, indecisos entre a vingança e a redenção, subúrbios onde as diferenças raciais e religiosas se esbatem, e onde um negro, um branco e um magrebino podem partilhar o mesmo ódio à polícia, à autoridade, ao país onde habitam - os laços que unem as pessoas podem ser negativos, tanto como podem ser positivos. Pelo que vamos sabendo, os jovens que ontem e hoje levaram a violência a território francês poderiam ser estas personagens, estes desenraizados dentro do seu próprio país que a determinada altura escolheram mal, e ouviram as palavras do clérigo radical que os acolheu e aceitaram o seu ódio e a sua razão envenenada.

Não, isto não é uma descupabilização do que fizeram: o acto de matar é individual, parte de uma escolha. E nem o clérigo mais radical, nem as condicionantes culturais dos assassinos, poderão desculpar este acto. Mas precisamos de saber por que razão o caminho é percorrido, de que modo é que a radicalização destes jovens ocidentais (o ISIS tem conseguido recrutar combatentes de todas as partes do mundo) é feita, o que os leva ali. A melhor maneira de combater a ascensão do radicalismo e a multiplicação de terroristas é evitar que os jovens imigrantes ou filhos de imigrantes achem mais aceitáveis os valores medievais e violentos do fundamentalismo islâmico do que os valores das democracias liberais - entre eles, um dos mais sagrados, a liberdade de expressão, e outro, não menos importante, o laicismo do Estado, a separação entre lei e religião. Será uma árdua tarefa que os governos ocidentais têm pela frente. Mas compreender o Outro e as suas motivações é a maneira mais fácil, a única maneira que temos, de combater ideias, de impor os nossos valores - e neste aspecto, não sou um relativista: não aceito que uma visão obscurantista do mundo seja colocada ao mesmo nível e olhada do mesmo modo que uma visão progressista. Os assassinos foram carrascos, mas também foram veículo de ideias. E não é a morte dos assassinos que vai apagar as ideias que os motivaram, que eles propagam. A guerra (ela existe) combate-se neste campo. Deixarmos de ser Charlie e passarmos a ser Dirty Harry não pode ser uma opção. 

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«As circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.»
- Ortega y Gasset

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