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365 forte

Sem antídoto conhecido.

Sem antídoto conhecido.

23
Jan15

O mastro mais alto do barco

Teresa

Era desta forma que um meu professor, na primeira aula da cadeira, descrevia o Direito de Família. Se a sociedade era o mar e o Direito Civil um barco o mastro mais alto era o que primeiro indicava qualquer alteração nas águas e a ela se adaptava de imediato baloiçando de acordo com a ondulação.

Senhor Professor Doutor, informo-o, lá onde estiver, que agora não é assim. As águas baloiçam, os mares mudaram, mas os nossos homens das leis insistem em manter o mastro mais alto firme e hirto como uma barra de ferro, dizem eles que para o salvar, digo eu que assim vai partir não tarda. Leis da física, entendem? 

Ontem o Parlamento voltou a rejeitar a possibilidade de adopção e apadrinhamento civil por casais do mesmo sexo. Parece que estão cheios de boas intenções, querem defender uns direitos quaisquer das crianças e uma noção qualquer de família e estão convencidos, para além de que têm razão, que as tais águas onde navegamos estão serenas e não sentem qualquer alteração. Não percebem que o medo os paralisou e à força de não se mexerem ficaram atolados no lodo e o barco, o nosso, há muito que já navega por longe, noutras águas, já conseguiu cruzar o Cabo Bojador e até já lhe mudou o nome para Boa Esperança.
 
Senhores deputados do não, venham comigo até às águas onde nós, que não os senhores, navegamos, gostava de vos mostrar como é a vida cá fora, onde o mostrengo e os ventos do medo e dos preconceitos já não prendem os pés de ninguém. Vou deixar-vos espreitar o meu mundo, o da Teresa que assina o post lá em cima, porque o meu mundo é deste mundo e devia ser do vosso mundo também.
 
Comecem por conhecer minha avó, a beirã que cresceu embalada no conforto dos teares da fábrica do pai, que já tinha sido do avô, que já tinha sido do bisavô. Tradicionalista, católica, conservadora, que nunca se afastou um milímetro das suas convicções mas que sabia, acima de tudo, o que era uma família, o que era afecto, o que era amor, que via o mastro maior a mexer e baloiçava com ele, e que me amou perdidamente e às minhas filhas mesmo vivendo eu no pecado mortal de nunca me ter casado, mas isso era lá com deus e ela era só uma avó, que entendeu quando as mesas de Natal apareciam com menos um lugar porque um amor tinha acabado e o divórcio tinha sido o mais correcto, que aceitou sem olhares de lado o homem por quem um dos netos se apaixonou e casou porque percebeu isso mesmo, que estavam apaixonados e, mesmo dizendo que esse já não era o tempo dela, o reconheceu como digno, era outra família mas uma família também. 
 
Venham até a uma pequena aldeia do interior algarvio onde as minha filhas, há mais tempo do que aquele em que alguns de vocês sentam o rabo nessas cadeiras que também são nossas, andaram na escola e onde o A., com 9 ou 10 anos, me foi apontado pelos amigos como o menino mais corajoso de todos, o menino que não respondeu à professora que queria ser médico, ou carpinteiro, ou nadador salvador, o menino que se levantou e disse que queria ser menina. O menino mais popular e querido da escola por isso mesmo, por os outros meninos respeitarem e admirarem a coragem dele.
 
Venham comigo ao princípio deste século XXI e assistam ao baptizado das minhas filhas que a minha mãe, pilar da sociedade, exemplo a seguir, católica militante, filha da minha avó, fez questão de organizar e a que, por amor a ela, somos uma família, percebem?,  não me opus porque água na cabeça pode constipar mas não tira bocado e vejam o padrinho de uma delas, uma bichona brasileira maluca, um dia pen friend lá ao longe de uma de nós e quase logo a seguir membro honoris causa da enorme família, tradicional como gostam, vejam-no a subir a nave da igreja matriz, monumento nacional, lugar importante e digno, espectador há séculos da vida de tantas famílias, até daquelas que agora os senhores representam, levando ao colo a minha bébé Down com o seu longo vestido branco bordado a contrastar divinalmente com o fato vermelho brilhante do padrinho,  DKNY sêu padre, gostá?, e as gargalhadas do senhor prior e o sorriso enternecedor de toda a gente. É padrinho católico, ainda bem, não foram feitas perguntas apesar da evidência entrar pelos olhos dentro em tons de vermelho vivo, padrinho civil não pode ser porque agora é casado e os senhores, que deviam ser menos papistas que o papa, não deixam.
 
Venham à minha rua, à rua para onde voltei, à escola das minhas filhas, aos cafés desta cidade pequenina, vulgar, chata. Venham ver como as filhas da F. e da C. são felizes, como não são apedrejadas nos jardins, como são iguais a todas as outras da creche, venham à escola secundária ver os namoros nos mesmos cantos onde também já namorei mas sem que agora a miudagem pare para reparar se é menino ou menina, apesar de repararem, e reclamarem, por outros, quase tão tontos como vocês, lhes terem bloqueado na escola o acesso ao site da Amnistia Internacional por causa de um encontro LGBT.
 
Venham conhecer o antigo director da escola básica, o fabuloso C, cheio de penas e plumas, qual Ney Matogrosso de província, mas respeitado por pais, colegas, funcionários e adorado pelos miúdos.
 
Venham passar o Natal com a minha outra família, a escolhida, onde há irmãos que são irmãos sem o serem, onde nenhum casal tem filhos em comum mas conta os do outro como próprios, onde há ex maridos com as novas mulheres e ex mulheres com os novos maridos e crianças aos pulos e felizes por terem a família junta e onde a M e a P são o casal mais antigo, o sobrevivente às ondas do mar, avós de coração da miudagem toda.
 
Senhores deputados do não, as águas já mexeram há muito, o mastro mais alto do barco abana que se farta e o Direito de Família devia abanar com ele antes que deixe de ser Direito e, muito menos, da família.
 
Em 2007 a minha filha mais nova tinha 10 anos e pouco antes do referendo sobre o aborto telefonou à avó. Explicou-lhe que tinha 10 anos, não a deixavam votar, mas o que ia ser decidido poucos dias depois ia ser muito mais sobre a futura vida dela do que sobre a vida futura ou actual da avó portanto, se não se importasse muito, minha filha é educada senhores deputados, depois disto tudo é-vos estranho, não é?, a avó podia, em sua representação, fazer a cruzinha no quadrado do sim?
 
Senhores deputados do não, o vosso voto também não mexe com a vossa vida mas com a vida de miúdos, talvez de 10 anos, a quem também não deixam votar apesar de serem os principais interessados e que, talvez, não tenham avós para votarem por eles. Nem pais, nem mães, nem provavelmente  ninguém, mas a quem os senhores deputados, com receio de enjoarem com o balanço do barco e fazerem má figura a vomitar na amurada ou serem, medinho, muito, compreendo-vos, atirados borda fora,  se recusam a dar a possibilidade de virem a ter uma família. Será que é preciso dar-lhes o vosso número de telefone para vos poderem fazer o pedido simples que a minha filha fez à avó? 
- Votem por nós, pensem em nós, deixem-nos ter uma família, diferente de todas as outras porque as famílias são todas diferentes, igual a todas as outras porque as famílias são todas iguais, sintam o balanço do mar e olhem para o mastro mais alto do barco sem medo, nós agradecemos.
 
Eu também. 
«As circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.»
- Ortega y Gasset

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