O lento recuo da decência (II)
Foi com choque e incredulidade que vi as notícias da morte da deputada trabalhista britânica Jo Cox ontem à tarde, alvejada e esfaqueda de forma brutal durante uma reunião com eleitores do círculo por onde tinha sido eleita.
Nestas alturas, a prática das democracias costuma ditar que não se façam leituras ou aproveitamentos políticos de acontecimentos trágicos, como o é a morte de uma pessoa. No entanto, não acho que tal separação seja possível neste caso.
Estamos a falar de uma política eleita que foi morta enquanto fazia trabalho político durante uma campanha eleitoral por um homem que clamou "Britain First", o nome de um partido político de extrema-direita. Desta forma, lamento, mas não sou capaz de dissociar esta morte da campanha para o referendo sobre a permanência do Reuno Unido na União Europeia e todo o ambiente político que o rodeia.
A existência de um movimento euro-céptico relevante no Reino Unido não é uma novidade, tal como não o é a sua importância no partido conservador. Foi, aliás, em parte, essa facção do partido de David Cameron que o chantageou a incluir a promessa deste referendo no manifesto eleitoral de 2015. O outro progenitor do refrendo é, obviamente o UKIP, partido que, além de euro-céptico, faz parte importante do seu discurso numa plataforma anti-imigração.
Não coloco em causa o direito e a legitimidade de se realizar um referendo sobre este assunto. Na realidade, defendo que os povos da Europa não deviam ter sido ignorados com tanta frequência no processo de construção da União Europeia. Mas este referendo, que podia ser sobre os objectivos, o funcionamento, a reforma ou o papel do Reino Unidoda na União Europeia, tem, na realidade, um tema quase único: o controlo das fronteiras e a imigração.
Mesmo para quem não tenha andado atento aos debates, basta olhar para o novo e repugnante cartaz do UKIP, apresentado com orgulho por Nigel Farage, para perceber que a xenofobia, a aversão à diversidade e o racismo estão no centro do debate sobre o "Brexit".
A morte de Jo Cox não pode ser dissociada do ódio que cresce e se respira no ambiente político britânico neste momento. As pessoas que ajudam a espalhar sentimentos que desvalorizam a vida do próximo não os podem ser desresponsabilizadas das consequências do ódio que ajudam a propagar, mesmo quando nelas não têm acção directa.
Os valores a que alguns gostam de chamar "valores europeus", democracia, tolerância, humanismo, solidariedade, estão a recuar em várias frentes e, infelizemnte, este não será o último episódio desta série. A pressão migratória e a crise de refugiados colocou esses valores, que tantos adoravam proclamar, à prova. A dura e triste realidade é que, para muita gente, se tratava a apenas de uma castelo que cartas de abstracções que ruiu face ao primeiro banho de realidade, criando o caldo perfeito para quem se quis aproveitar da incerteza e do medo.
Aqueles que, como eu, defendem a tolerância, a diversidade e a solidariedade precisam de ser muito mais firmes e ruidosos na defesa desses ideais, sob pena de serem constantemente abafados pelo discurso perigoso mas virulento que apela ao egoísmo e ao medo. Não podemos ser complacentes com os extremistas que, nestes dias, parecem ir brotando a cada esquina.