Lição islandesa de Bjartur de Laxness sobre a crise económica
Sem nunca lá ter estado, nunca me interessei muito pela Islândia. Demasiada natureza e muito pouca densidade para o meu gosto. Foi então que o trabalho me trouxe até à Islândia em Agosto de 2008. Apaixonei-me enquanto a economia islandesa desmoronava. Queria aprender o que era a Islândia e a sua cultura. Todos os islandeses que conheci disseram-me que devia ler Gente Independente. Li sobre a Casa-de-Inverno de Bjartur que se se transformou numa Casa-de-Verão enquanto lia também sobre a terra do fogo e do gelo transformada na terra das bancarrotas e das falências.
Fiquei espantada com as semelhanças das duas histórias: o cenário que serve de base à trama de Gente Independente e a situação de hoje são quase os mesmos. Começaram ambos pelo status quo. Há um boom económico. Há a ilusão que vai durar para sempre. O boom inclui um crescimento do imobiliário. Há pessoas a comprar bens que não podem pagar. Há uma mistura explosiva de políticos e homens de negócio. Há muitos e maus empréstimos. Há um colapso a seguir ao boom. Há empréstimos que não podem ser pagos. Casas abandonadas, deixadas vazias, algumas por acabar. O cenário de Bjartur faz-me tanto sentido como faz o cenário dos dias de hoje. Mas existe uma diferença, uma grande diferença. Depois do colapso, Bjartur foi, a pé, viver para uma casa destruída, sem aquecimento, sem privacidade, com a sua jovem filha analfabeta, que morre de uma vulgar doença. A seguir ao colapso do nosso tempo, as pessoas seguem para as suas casa tecnologicamente avançadas e continuam a mandar os seus saudáveis filhos para os colégios.
Esta diferença não é insignificante. Em poucas décadas, o país passou das condições de vida de Bjartur a possibilitar que adultos de 23 anos possam continuar os estudos sem que para isso precisem de trabalhar. Para mim, esta é uma incrível e maravilhosa diferença.
Nos blogues islandeses em inglês, li comentários sobre a grande figura de Bjartur e os grandes erros da Islândia de hoje. Glória a Bjartur e desgraça às figuras públicas de hoje. E pensei: esperem aí! Não podem estar a falar a sério. A diferença entre os tempos de Bjartur e os de hoje é uma conquista extraordinária e quase uma lição miraculosa. Olhando com alguma nostalgia para os tempos de Bjartur, tudo isto só foi possível devido à riqueza de que a Islândia agora goza. Hoje, ninguém quer morar em casas de turfa sem eletricidade, sem casa de banho, e um quarto partilhado com a sogra e três crianças, pouca comida, um livro e muitas doenças.
É verdade que houve erros durante esta crise. Os islandeses são humanos, como toda a gente. Os erros são uma parte incontornável da condição humana. No entanto, também houve sucessos. Afinal de contas, a Islândia fez alguma coisa certa. O aumento das condições de vida da Primeira para a Segunda Guerra Mundial parece ter sido mínimo (o meu conhecimento tem como base outra obra de Laxness – The Atomic Station). Pelo contrário, o crescimento nas últimas décadas é enorme e real.
Houve um boom económico e um colapso no tempo de Bjartur. Houve um boom e um colapso no nosso tempo. É normal que assim seja, não apenas na Islândia mas em todo o Mundo. São os chamados ciclos económicos. Houve ciclos no passado e vão continuar a haver no futuro. São inevitáveis. Booms e colapsos não são a questão principal. O que importa é se há condições de suportar um colapso. Espero que a Islândia continue no caminho que tem seguido nos últimos tempos em vez de tentar regressar ao passado, ao que gerou miséria durante séculos.
Acredito que esta crise económica seja uma oportunidade para a Islândia olhar bem para os seus sucessos recentes e perceber o que os tornou possíveis. Esta é uma oportunidade para olhar para trás, para o tempo de Bjartur, brindar à diferença que existe do seu tempo para os dias de hoje e compreender o que o tornou possível através da comparação de acontecimentos semelhantes que ocorrem agora, sem que a Islândia possa acabar numa situação terrível como a que vivia nos tempos de Bjartur.
Vamos voltar à história de Bjartur. Analisemos o boom e o colapso que ocorreram no seu tempo e descritos na obra. Apesar das suas diferenças, booms e colapsos são necessariamente semelhantes ao ponto de podermos traçar alguns paralelos. A história de Bjartur e a dos dias de hoje são tão idênticas que podemos olhar para uma e perceber o sentido da outra.
No Gente Independente houve um boom económico. Mas houve um responsável por isso? Houve algum senhor X a quem pudéssemos apontar o dedo e dizer: é este o responsável? Não. O início do boom é referido tão somente com “e então houve um boom económico”. Aconteceu, apenas. Veio de fora, por causa da Grande Guerra. A Islândia de Bjartur reagiu às forças económicas internacionais. Não houve um político ou um partido político responsável pelo boom. A Islândia deixou-se levar por essas forças económicas internacionais. Bjartur não percebeu o que se estava a passar. Percebeu apenas que estava a ganhar mais dinheiro com a venda de lã. Viu que tinha oportunidade de melhorar o seu estilo de vida e construir uma nova casa. Contraiu um empréstimo, que passou a estar acessível. Sentia-se feliz e realizado. Os políticos e os banqueiros locais também não tinham planeado o boom, nem o tinham feito acontecer. Eles, como Bjartur, viram uma oportunidade para melhorar o seu estilo de vida e aproveitaram-na.
O boom recente não foi, em vários aspetos, muito diferente. Os islandeses viram a sua riqueza crescer e a oportunidade de melhorarem o seu estilo de vida. E também a aproveitaram. E tal como os políticos e banqueiros do tempo de Bjartur, alguns políticos e banqueiros do nosso tempo talvez tivessem desejado poder reclamar responsabilidade no boom que ocorreu por volta do virar do século (2000). Mas não puderam. Ninguém foi responsável. O boom ocorreu à escala planetária. Mais uma vez, não se podia apontar o dedo a quem quer que fosse e dizer: “é ele o responsável pela expansão económica global”. Políticos e banqueiros viram uma oportunidade para melhorar as suas condições e aproveitaram-na – tal como foi feito nos Estados Unidos e no resto do Mundo. Uma pessoa, por mais competente que seja, não é capaz de fazer crescer a economia de um país e arrastar toda a economia mundial consigo nesse crescimento.
Pensar que pode haver um responsável pelo crescimento económico é um erro baseado no orgulho e arrogância dos Homens. É uma reivindicação vulgar, mas isso não a torna verdadeira. A economia de um país, mesmo um pequeno país, é um fenómeno demasiado complexo para ser controlado por uma pessoa ou por um pequeno grupo de pessoas. E quando a economia fica sujeita às forças internacionais, essa reivindicação torna-se ainda mais sem sentido. Os políticos gostam muito de pensar que controlam a economia: “Estão a ver como estou a sair-me bem?” No entanto, reivindicar algo não é a mesma coisa que ter o poder para a fazer. A economia não é uma máquina que possa ser controlada pela vontade alheia. A economia não é um carro. A economia é uma ordem que, de uma certa forma, tem vontade própria. Vive da interacção de muitas, muitas pessoas – das suas decisões, dos seus conhecimentos. Até a mais conscienciosa economia não seguiu à risca os planos traçados e assumiu vida própria. A economia é uma ordem, repetindo uma velha expressão, que emerge de acções e não de concepções humanas. Sabemos que existe. Sabemos que funciona, mas a um nível mais profundo não sabemos como.
E o colapso? Bom, voltemos à história de Gente Independente. O colapso, tal como o boom, aconteceu. Nenhum político foi capaz de o travar. Veio do exterior. Veio com o final da Guerra. Veio com alguns avisos que não foram levados a sério. E não foi por culpa de qualquer político ou banqueiro.
Tal como aconteceu recentemente, houve um colapso. Enorme, mas na mesma um colapso, idêntico a outros anteriores. Tal como em outros colapsos, políticos locais, competentes ou incompetentes, honestos ou corruptos, não são a causa direta por muito que muita gente possa reclamar ou apontar o dedo. Um político ou mesmo um partido político não tem esse tipo de poder.
A economia no tempo de Bjartur viveu um ciclo. A economia do nosso tempo vive outro ciclo. Todas as economias vivem de ciclos. Sempre foi assim. A economia não é estável. Nenhuma é. Crescem e contraem-se. São fases normais na vida de uma economia. Os ciclos das economias são como os batimentos cardíacos. Um coração que não bate é um coração morto. Uma economia que não viva de ciclos, é uma economia que não funciona. A diferença é que os batimentos cardíacos têm um ritmo regular, enquanto as batidas de uma economia são irregulares e imprevisíveis.
Porque é que as economias vivem de ciclos? Porque resultam de acções de seres humanos, que tomam decisões económicas. Algumas provam estarem certas, outras erradas. Porque tomam as pessoas decisões erradas? Ignorância, incompetência, excesso de confiança ou, por vezes, puro azar.
As circunstâncias mudam, portanto, decisões tomadas em circunstâncias diferentes não se aplicam umas às outras. Os ciclos são importantes porque não raras vezes há formas de se tomar consciência que há decisões que não são apropriadas em determinadas circunstâncias e por isso é preciso alterar comportamentos de acordo com a situação. Os colapsos podem, assim, ser valorizados na vida de uma economia. Os colapsos permitem-nos ajustar às diferentes circunstâncias.
Ainda assim, passamos a vida a ouvir que devíamos evitar os colapsos, que se deviam suavizar os ciclos. A ideia é atraente. Ninguém gosta de mudanças, especialmente quando significam sofrimento, no presente ou no futuro imediato. Além disso, suavizar ciclos implica que alguém possa controlar a economia e saiba como fazê-lo. É, de facto, uma ideia muito atraente. Quem é que não gosta de brincar de feiticeiro meteorológico? De fazer chover? Porém, na verdade, ninguém tem o poder ou os conhecimentos necessários para controlar a economia. Os economistas sabem muito, mas também sabem muito do que não sabem. Sabem que uma economia não é um carro que possa ser conduzir a seu bel-prazer. Mesmo que a economia fosse um carro, saberiam que poderiam não ter o conhecimento necessário para o reparar e até o conduzir. As tentativas do passado terminaram todas da mesma forma: em cacos. Alguns economistas tornam-se conselheiros políticos e os seus salários vêm de políticos que querem ser - e publicamente se reivindicam como sendo - os condutores da máquina económica. O que podemos esperar que esses economistas digam? “Ouçam, não há muito que possamos fazer... certifiquem-se apenas que as pessoas vivam de acordo com as regras”. Ou então: “Ó, claro que somos capazes de resolver o assunto!”
Dizer que a economia é uma ordem que tem uma espécie de vida própria e não pode ser conduzida como um carro não implica que não haja nada que os políticos possam fazer. O que podem fazer é criar organizações e incentivos que façam com que a economia funcione ou estrangule.
Num certo sentido, se houver alguém que quiser olhar para a economia como um carro que qualquer político possa conduzir, então, o melhor carro que cabe nesta imagem seria o Herbie, o Volkswagen Carocha dos filmes da Disney. Herbie, para choque de todos os seus condutores, está vivo. Anda, independentemente da vontade do condutor. Anda sozinho para chamar a atenção alheia quando se sente carente. Recusa-se teimosamente em colaborar quando alguma coisa de mal é feita. Comporta-se de forma diferente com diferentes condutores: com bons condutores anda depressa, mas com maus condutores anda muito devagar, quando não se recusa mesmo a andar. Bons condutores, numa economia, são as boas instituições. Maus condutores são as más instituições.
Os economistas sabem hoje que as instituições são importantes. As mais relevantes, que permitem à economia florescer, são a liberdade e os mercados livres, definição e proteção dos direitos de propriedade, estabilidade política, imigração e desenvolvimento de capital humano. Como mencionei no início deste ensaio, fiquei espantada com a semelhança entre os tempos de Bjartur e a atualidade, mas também fiquei espantada pelas diferenças. O que aconteceu entre esses tempos e os de hoje que fizeram com que as condições miseráveis tivessem desaparecido? A Islândia desenvolveu boas instituições nas últimas décadas. Instituições que faltaram no tempo de Bjartur.
O que interessa, então, não é evitar as quedas – o que simplesmente não é possível –, mas cair da forma menos dolorosa possível. A queda de Bjartur foi dolorosa. A queda de hoje também é dolorosa, mas tem lugar num país mais suave e mais quente do que a terra dura e gelada do tempo de Bjartur. Nesta questão de auto-suficiência, Bjartur, basicamente, matou toda a gente à sua volta (à exceção da sogra!). A vida de Bjartur é cheia de sofrimento e morte. A economia da Islândia de Bjartur era miserável e isolada do resto do Mundo. Como Gente Independente nos mostra, a auto-suficiência é a receita para a miséria. A Islândia começou o seu caminho rumo à riqueza quando se permitiu ser “dependente“, quando se abriu ao resto do Mundo. Usei a palavra "dependente" entre aspas por parecer exatamente o oposto de independente. Parece, mas não é. A palavra correta é, precisamente, interdependente. A Islândia conseguiu abandonar a pobreza quando abraçou o resto do Mundo. Quanto mais aberto for um país, maiores serão os mercados em que se movimenta, mais interdependente se torna, maior prosperidade terá esse país.
As boas instituições é que interessam. Ter direitos de propriedade reforçados e bem definidos interessa. Ter impostos e regulamentações suaves interessa. Ter uma política de imigração aberta interessa. Ter bons incentivos ao desenvolvimento de capital humano interessa. No entanto, para a Islândia, tal não significa necessariamente uma adesão à União Europeia (UE). A Islândia pode beneficiar do mercado livre no espaço europeu sem se juntar à UE, tal como o fez no passado. Pelo contrário, aderir à UE pode ser usado como bode expiatório. No futuro, se alguma coisa correr mal, podem sempre culpa a UE, dando assim uma cobertura imerecida aos políticos locais. Aderir à UE também pode ser usado para acrescentar perturbações económicas aos jogos políticos. Quanto maior for a regulação e a burocracia, mais poder terão os políticos. A corrupção terá uma espécie de camada a mais em vez de ser eliminada. Quanto maior for a regulação, mais lugar a subornos e a cobrança de favores haverá. Mais hipótese há de se fechar um olho, ou mesmos os dois, para abrir uma excepção. A Islândia tem estado muito bem nas últimas décadas ao construir as instituições certas, sem precisar de aderir à UE. Deveria continuar nesse caminho, sobretudo nos dias de hoje.
A actual colheita de políticos parece estar preocupada em como é que a Islândia poderá ter os requisitos necessários para aderir à UE. Deveriam era estar preocupados com os custos que isso poderá acarretar para o país. Para além de mais leis, regulações e impostos que irão pesar ainda mais a economia no seu todo, a pesca (a indústria mais valiosa na Islândia), iria sofrer particularmente com a inclusão na UE. A substituição da coroa pelo euro também teria os seus custos elevados. Ter a hipótese de escolha para além da moeda é muito melhor em todos níveis do que não ter direito a escolher. Se a perspectiva de adesão à UE trouxesse realmente esperança à Islândia, então porque é que muitos islandeses estão de partida? Porque é que a MacDonald’s está de partida, acrescentando que não tem sequer planos de regressar num futuro próximo? Herbie está a tossir e a cuspir: a ameaça de regresso de algumas más instituições parece forte. Estarão os tempos de Bjartur de regresso também?
Se a Islândia fez tanta coisa boa num passado recente, se teve a sorte suficiente de criar boas instituições quando o timing era o mais acertado, então porque está em queda? Perguntar porquê a Islândia é como perguntar porquê o Lehman Brothers? Podemos apontar para uma causa imediata, mas simplesmente teremos de dizer: puro azar. Podia ter acontecido a outro qualquer. A Islândia, tal como o Lehman, foi o primeiro a cair. Contou a ignorância e a incerteza sobre o que se estava a passar. As soluções encontradas, mais tarde, para outros casos só foram possíveis porque a Islândia e o Lehman Brothers serviram de exemplo para se perceber até que ponto as coisas podem realmente piorar.
Como será se um país desenvolvido pedir ajuda financeira de emergência e esses empréstimos, por qualquer razão desconhecida, não são concedidos? Agora sabemos como é. É muito mau. É a crise financeira. Os outros países, que pediram ajuda financeira depois do colapso da Islândia, tiveram os seus empréstimos. As suas quedas não foram tão más como a da Islândia. Como será se um país estrangeiro causar uma corrida aos bancos (como o Reino Unido fez no caso da Islândia) e, simultaneamente, congelar todos os activos desses bancos (e do país a que esses bancos pertencem)? Agora sabemos como é. É muito, muito mau. É o colapso do sistema bancário. Isto, efectivamente, até sabíamos antes de acontecer. Os bancos funcionam num princípio de reserva fraccional. Isto significa que o banco assume que todas as pessoas que têm depósitos jamais vão pedir, todas ao mesmo tempo, o seu dinheiro de volta. É assim que os bancos usam parte desses depósitos para financiar empréstimos. No entanto, se todos os depositantes pedirem o seu dinheiro de volta ao mesmo tempo, o banco fica na penúria já que não tem reservas suficientes para fazer a devolução a todos os seus clientes. Talvez o Reino Unido se tenha esquecido disso? Bom, agora, seguramente que estará recordado, assim como o resto do Mundo.
Portanto, foi isto que aprendi com Bjartur da Casa-de-Verão. Espero não estar só quando olho para a sua história e gostar do facto da Islândia ter crescido nas últimas décadas, do facto das pessoas estarem bem melhor do que estavam no tempo de Bjartur. Espero que os islandeses consigam dar valor ao milagre que viveram graças às suas tentativas de sucesso de construir boas instituições e que continuem no caminho do crescimento e da liberdade.
Ensaio publicado aqui por Maria Pia Paganelli em 2010, no original em inglês, com o título Learning from Bjartur About Today's Icelandic Economic Crises. Tradução livre.