Kafka e a UE
"A conviction, an intuition, a delusion - what is the difference when it cannot be questioned"
J. M. Coetzee
Pode parecer surreal não existir qualquer base cientifica para o limite imposto pelas regras europeias de 3% de défice anual e de 60% de dívida pública em função do PIB. Com efeito, o número de 3% surgiu em 1981 da cabeça de um burocrata francês: teria que soar científico, mas não podia ser 1%, seria impossível de atingir; também não podia ser 2%, é muito restritivo; surgiu então 3%: “era um bom número, sem virgulas, que fazia pensar na Trindade, um número que agrada à divindade". Por sua vez, os 60%, também um número redondo, corresponde a um mero cálculo aritmético: se o défice for de 3%, a dívida de 60% manter-se-á caso o PIB aumente 3% e a inflação se mantenha nos 2% - equilíbrio puramente estético (faz lembrar os "padrões de bomba" no Catch 22).
À conta desta exigência, por várias vezes os governos viram-se obrigados a tomar medidas que antecipam receitas (venda de créditos fiscais, nacionalização de fundo de pensões) e/ou adiam despesas (PPPs, arrendamento de edifícios e adaptação dos mesmos para Tribunais em vez de serem construídos de raiz) colocando, assim, em causa o médio e o longo prazo.
A verdade é que estas normas não existem por razões económicas - não existe uma teoria coerente sobre o nível adequado de défice anual ou de dívida pública. Estas normas servem unicamente para exercer um controlo ideológico. E é por essa razão que agora surgiu a discussão sobre o défice estrutural: um indicador complexo e arbitrário, suficientemente maleável para que se possa adaptar às necessidades políticas de cada momento.
Mas ainda pior do que vigorarem regras obtusas na UE é a sua aplicação distinta consoante o país, conforme apontou o Tribunal de Contas Europeu. As regras podem a qualquer tempo ser alteradas; porém, se a sua aplicação não é uniforme, não há instituição — democrática — que sobreviva.