I-catching Capital
Na última semana, a Comissão Europeia concluiu que, apesar da taxa de IRC da Irlanda ser de 12,5%, a Apple pagou apenas 1% de impostos sobre os lucros europeus em 2003 e cerca de 0,005% em 2014.
Entretanto, Assunção Cristas veio propor a descida do IRC em Portugal de 21% para 5,5%.
Estas duas notícias reflectem a pressão que o capital tem feito para fugir à tributação. Na sua obra Catching Capital - The Ethics Of Tax Competition, Peter Dietsch procura descrever este fenómeno:
Graças à mobilidade do capital e à consequente competição fiscal, assiste-se a uma desdemocratização do capitalismo, em que é permitido ao capital excluir-se do contrato social; pode, por exemplo, beneficiar dos serviços públicos e infra-estruturas de um determinado país, mas pagar impostos correspondentes noutro país com uma taxa mais reduzida.
Acresce que num mundo desregulado e globalizado o capital pode entrar em "greve". Pressiona os trabalhadores para aceitarem cortes salariais ou diminuição de outros benefícios; pressiona os Estados para lhes conceder benefícios fiscais ou outros. E sempre com o argumento de que estas condições são necessárias para que as empresas se mantenham competitivas e a sua recusa levaria à perda de empregos.
Um dos exemplos mais extremos deste poder excessivo do capital é o conflito da Boeing com os trabalhadores na sua fábrica em Seattle em fins de 2013. A empresa, cujas acções tinham acabado de atingir a sua máxima valorização – e cujo CEO tinha recebido um aumento de 20%, ascendendo o seu salário a 27,5 milhões de dólares –, queria que o sindicato fizesse concessões nos salários [propôs cortes salariais]. E fê-lo depois de ter auferido o maior benefício fiscal da história dos EUA no valor de 8,7 mil milhões de dólares. Sem esquecer que a Boeing é uma das 26 empresas da Fortune 500 que entre 2008-2012 não pagaram impostos a nível federal, pese embora nesse período ter tido lucros.
A competição fiscal entre Estados empurra para baixo a taxa de impostos sobre o capital . Com efeito, por força desta pressão, nos últimos 30 anos, tanto a taxa do IRC como a taxa de IRS para os escalões mais altos desceram nos países da OCDE. Para responder a esta quebra forçada de receita, os países alargaram a sua base tributável taxando mais o consumo e os rendimentos do trabalho e limitaram o nível da despesa pública. Na prática o sistema fiscal tornou-se mais regressivo (nota: tanto a receita como a despesa contribuem para a redistribuição da riqueza, pelo que a progressividade ou regressividade de um regime fiscal apenas pode ser avaliada pesando as duas componentes), sendo que um sistema fiscal mais regressivo leva ao aumento das desigualdades
À ideia de "no taxation without representation", central à formação das democracias, está inerente o princípio da "autodeterminação fiscal": é aos cidadãos – e não às corporações – que compete determinar as políticas fiscal e orçamental, em função do projecto político escolhido pela maioria.
Perante esta ameaça às democracias, Peter Dietsch propõe a criação de uma instituição supra-nacional que regule a competição fiscal entre Estados.
Enquanto tal não se concretiza (e, diga-se, essa não parece ser uma prioridade política para a comunidade internacional), cabe à UE, como entidade supranacional promotora da democracia, a tarefa de contrariar a competição fiscal entre os seus estados-membro. Infelizmente, uma Comissão Europeia liderada pelo ex-PM do Luxemburgo, responsável por um regime fiscal que permitiu a fuga aos impostos por parte das multinacionais, retirando milhões aos cofres públicos, não augura nada de bom.
Nota: O próprio capitalismo sofre com a existência desta competição fiscal: as multinacionais beneficiam de condições vedadas aos seus competidores mais pequenos, resultando em concorrência desleal. Não é por acaso que a Organização Mundial do Comércio proíbe a maior parte dos subsídios à indústria porque considera que estes impedem a existência de uma competição justa entre as diversas empresas.