Do aguardado discurso de hoje de Theresa May, primeira-ministra britânica, sobre o seu plano de sair da União Europeia resultaram poucas novidades. A que teve mais impacto foi a confirmação que o Reino Unido terá uma “saída dura” da UE, isto é não tem interesse em permanecer no mercado comum europeu, ou na própria união alfandegária, o que significa, na prática, que a capacidade que a União teria de influenciar o Reino Unido em continuar a manter a livre circulação de pessoas entre a UE e o Reino Unido já não existe. O Reino Unido abdicou do livre acesso dos seus bens e serviços ao mercado europeu, para poder controlar o acesso dos europeus ao seu território. É uma escolha democrática e legítima, por muito que seja um retrocesso gigantesco no próprio processo de integração europeu.
Não haverá livre circulação de cidadãos europeus no Reino Unido, o que significa, por simples reciprocidade, que não haverá livre circulação de britânicos no espaço europeu. Isto é já um dado adquirido. É bom que os eurocratas, e os euro-entusiastas, de uma vez por todas metam isso nas suas cabeças. Porque, ao contrário do que muitos têm dito, a possibilidade desta saída ser conflituosa reside muito mais no lado europeu, que no britânico. As linha-mestras da posição britânica foram hoje expostas: eles vão sair, eles não querem a livre-circulação de pessoas, querem um acordo de comércio-livre com a UE, vão parar com as contribuições para o orçamento da UE, não mais os tribunais europeus terão jurisdição no seu território, e estão dispostos a continuar as parcerias militares, de justiça e segurança interna.
Com a ressalva da questão irlandesa, onde o Reino Unido parece querer manter a livre-circulação entre cidadãos da Irlanda e da Irlanda do Norte, o que nos pode parecer um aspecto em que talvez seja necessário uma excepção das regras europeias, de forma a manter a paz na Irlanda, algo que é do interesse absoluto de todas as partes, estas linhas-mestras são aceitáveis e servem bem para determinar o que quer o Reino Unido.
Mas o que quer a UE nesta negociação? Parece haver em vários sectores europeus a ideia de que o “Brexit” poderá ser ainda travado, e que um dos factores que poderia ajudar a esse objectivo, seria uma negociação com tais resultados negativos, que o parlamento britânico seria obrigado a rejeitá-lo, abrindo assim caminho a que os britânicos poderiam reconsiderar a saída da União. Outra linha de raciocínio é a chamada “negociação punitiva”, em que os resultados do “Brexit” teriam de ser de tal forma negativos para o Reino Unido, que servisse como “vacina” para a população de outros estados-membros que pudessem ter a leviandade de seguir o caminho de sair da União.
Ambas estas perspectivas, se influenciarem a negociação do lado europeu, irão aumentar grandemente a possibilidade de não haver um acordo real entre as partes. E como Theresa May já disse neste discurso, se a alternativa for entre um mau acordo, e um não-acordo, o Reino Unido preferirá um não-acordo. E isso não é do interesse da UE. Nem que seja porque haveria danos económicos entre as duas partes, mas sobretudo o impacto seria desigual entre os diferentes estados-membros. Haveria sempre países mais prejudicados com um corte das relações comerciais com o Reino Unido do que outros, e isso seria mais um factor de destabilização da própria Europa. Aliás, a existência de uma negociação entre 27 países de um lado, e apenas um do outro, tende sempre a dificultar a posição negocial do bloco dos 27 países. São esses 27 países que se têm de entender ao mesmo tempo que negociam com o outro. E se esses 27 são afectados de forma diferente pelas relações comerciais com o Reino Unido, há grande potencial para negociações muito difíceis, sem que ideias alucinadas e irracionais afectem ainda mais o processo.
O Reino Unido vai sair da União Europeia. Vai sair do mercado comum e da união alfandegária. Isto é um dado adquirido.
Resta à UE negociar o melhor acordo comercial possível recíproco com o Reino Unido, definir o estatuto dos cidadãos europeus residentes nesse país, assim como o dos cidadãos britânicos na Europa, e manter a parceria em termos militares, de justiça e segurança comum.
Nada mais.
E no caso português, acho essencial que seja rapidamente criada uma Unidade de Missão no seio do Governo, de forma a que Portugal possa autonomamente definir quais são os interesses nas negociações do “Brexit”. O que temos a perder, e o que temos a ganhar neste novo contexto. Para não termos que seguir acéfalamente o que decidem outros.