19
Fev16
Dois votos sobre o escrutínio do processo legislativo
David Crisóstomo
A propósito desta votação e da votação de carácter idêntico que confirmou a aprovação do Decreto da Assembleia 6/XIII, que revoga(rá) as restrições à interrupção voluntária da gravidez impostas no Verão passado, duas notas sobre a transparência e acessibilidade de duas das entidades envolvidas no processo que leva a criação de Leis:
- por mais apelos que lhe tenham sido feitos, a Assembleia da República continua a não conseguir concretizar um sistema que permita um rápido e eficaz acesso dos cidadãos eleitores às votações realizadas e aos votantes e proponentes dos diplomas que vão a votos. Utilizemos a confirmação do Decreto da Assembleia n.º 7/XIII, que consagrará a adopção por casais do mesmo sexo, como exemplo. Uma votação que foi acompanhada em directo por três canais de informação televisiva e vários jornalistas da imprensa escrita e radiofónica, que foi o culminar de vários anos de votações similares (que não tinham passado da discussão na generalidade ou, até 2014, da discussão na especialidade), que foi alvo de um veto pelo senhor Presidente da República, e que novamente a votos no plenário da Assembleia da República - e todavia, mais de uma semana depois da votação, o site do parlamento (o único meio de escrutínio público directo que existe do órgão de soberania) contínua a não possibilitar a consulta dos nomes dos deputados que divergiram das orientações da suas bancadas e votaram de forma diferente dos seus colegas de grupo parlamentar. E não só: apesar de ser público, por ter sido amplamente noticiado, as páginas das iniciativas legislativas originais continuam a insistir* que não houve nenhum parlamentar do PSD a votar pela aprovação na votação de 10 de Fevereiro. E se normalmente tal poderia ser ultrapassado por uma visualização do vídeo da sessão plenária (este também em regra apenas disponibilizado online 48h depois da dita), acontece que como estávamos perante uma votação electrónica (obrigatória por ser constitucionalmente necessário assegurar "uma maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções"), o Presidente da Assembleia da República não identificou os deputados que votaram de forma diferente dos seus grupos parlamentares. A opacidade chega a este nível de surrealismo: como os deputados não foram identificados no anúncio do resultado da votação, os seus nomes nem sequer constarão do Diário da Assembleia da República daquele dia - a votação electrónica, que visa garantir que existem 116 deputados presentes a aprovarem o diploma vetado, acaba por permitir um escrutínio público inferior ao das restantes votações. Em duas ocasiões recentes deste tipo de votações, foi graças a funcionários do parlamento que pude ter acesso os nomes dos parlamentares em questão (a outra que me refiro é esta de 8 de Maio; como poderão confirmar, a página da iniciativa contínua a não identificar os deputados que divergiram das suas bancadas). Seria de esperar que, quase 40 anos após a primeira sessão da Iª Legislatura da Assembleia República a 3 de Junho de 1976, a nossa câmara parlamentar nacional já tivesse chegado à conclusão que não pode continuar a embaciar e burocratizar o acesso dos cidadãos que diz representar ao seus trabalhos e votações.
- a Constituição da República Portuguesa não prevê nenhuma acção ou sanção caso o Presidente da República não promulgue, vete ou solicite a fiscalização preventiva da constitucionalidade de um diploma que lhe tenha acabado de chegar. Mesmo após um veto e uma confirmação do decreto vetado, a Constituição nada prevê caso o presidente se recuse a promulgar o diploma no prazo de 8 dias. É difícil compreender como é que os legisladores originais da Assembleia Constituinte permitiram criar tal falha no sistema (ou como tal situação não foi corrigida nas sucessivas revisões constitucionais que ocorreram desde então). Mas talvez tão importante como a existência um conjunto de disposições legais caso o Presidente não cumpra os prazos constitucionais, é a capacidade do público de escrutinar e verificar o cumprimento desses prazos - e tal não é hoje possível, pois a Presidência da República, em 10 anos de mandato de Cavaco Silva, nunca optou por criar no site da instituição uma secção onde fosse possível acompanhar todos os decretos que dão entrada no Palácio de Belém e todas promulgações ou vetos exercidos pelo ocupante do cargo. Nem os pedidos de fiscalização da constitucionalidade, preventiva ou sucessivamente, são tornados públicos, sendo quanto muito noticiado o envio do diploma para o Tribunal Constitucional (e dado que este também não publica em parte alguma os pedidos de fiscalização que lhe são destinados, estes acabam por ser quase secretos até ao momento da decisão do tribunal - como aconteceu recentemente com o pedido de fiscalização do Orçamento de Estado de 2015, na disposição relativa à suspensão das subvenções vitalícias de antigos deputados; os textos dos pedidos, esses, sejam da Assembleia da República ou do Presidente da República, raramente veem a luz). Também seria de esperar que, quase 40 anos depois da tomada de posse do 1º Presidente da República eleito por sufrágio universal e directo a 14 de Julho de 1976, a Presidência da República (como o novo ocupante) entendesse que não pode continuar a dar desculpas deste calibre quando alguém nota uma possível falha no cumprimento da Constituição em diplomas que tiveram uma boa dose mediática e que tiveram a "sorte" de ser alvo de comunicados na página oficial - o que levanta imediatamente a suspeita: terão ocorrido situações destas, de possível desrespeito pelos prazos legais para a promulgação de decretos, noutros diplomas que não suscitaram tanta atenção pública?
*(uso "insistir" pois garanto-vos que já foram avisados duas vezes para o erro e vão ser avisados uma terceira).