09
Jan15
Do medo
Teresa
Quando na manhã do dia 11 de Março de 2004 ouvi as primeiras notícias sobre as bombas na estação de Atocha o meu primeiro pensamento foi que muito poucos dias antes, àquela mesma hora, eu estava lá. É inútil pôr uma pose de boa pessoa e tentar disfarçar porque a verdade feia é que na altura, ao ouvir as notícias, não pensei nos que tinham morrido mas sim que podia ter sido eu e tive medo, um medo estúpido mas medo, e foi sem conseguir largar esse medo que me meti no carro para fazer os poucos quilómetros que me separavam do trabalho.
Nessa altura vivia no Algarve e o caminho do costume era uma estrada secundária com pouco ou nenhum trânsito e era por ele que eu seguia acompanhada pelo meu medo e pelas notícias do atentado que iam chegando pela rádio até que, numa curva mais manhosa, a carrinha branca de caixa fechada que seguia à minha frente derrapa, entra na berma e vira-se. Parei imediatamente a uns metros de distância, a carrinha estava meio desfeita e completamente tombada para um dos lados e da única janela livre saía um braço e esse braço que não se mexia era o único indício de gente que eu conseguia ver. Não presto para grande coisa em situações de sangrias desatadas e não sabendo o que me esperava liguei para o 112 sem sair do carro, de certeza que ajudariam mais do que eu, e comecei a responder às perguntas que me faziam do outro lado até chegar à parte do quantos feridos são e qual o estado deles. Expliquei,com algum embaraço, que não fazia a mínima ideia porque não me queria aproximar e de onde estava só via um braço imóvel mas a insistência, que se percebe, era grande e fui convencida a ir verificar o número de feridos.
Tinha acabado de sair do carro quando uma porta da carrinha tombada se abriu e começou a sair gente: um, dois, dois homens, dois homens cambaleantes vestidos de túnicas brancas até aos pés e turbantes na cabeça.
Fugi. Fugi sem olhar para trás. Desliguei o telefone, meti-me outra vez no carro e fugi dali o mais depressa que consegui. Madrid, Atocha, bombas e o meu medo fizeram com que no Algarve, no meio de uma estrada pacífica e conhecida, aqueles dois homens de túnicas brancas até aos pés e turbantes na cabeça deixassem de repente, só porque tinham túnicas brancas até aos pés e turbantes na cabeça, de ser dois homens que tinham acabado de ter um acidente e que eu queria ajudar e passassem a ser dois perigosos terroristas fugidos de Espanha com uma carrinha de caixa fechada cheia de explosivos. E aquilo tinha andado aos rebolões e ia rebentar tudo e eu ia morrer como não tinha morrido na estação.
Puta de medo que fez com que, ainda hoje, tenha vergonha de mim mas é desse medo que eu tenho medo porque já o experimentei e sei que é esse estúpido e preconceituoso medo que nos transforma em animais irracionais que ou fogem ou atacam.
E a tal vergonha, a mesma que ainda hoje tenho, de pouco nos serve depois.