A nova normalidade
Andámos muitos anos, décadas, a viver acima das nossas possibilidade. Andou o Estado, gastando mais do que podia, e andámos nós, vivendo do crédito fácil que nos foi permitindo exibir um estilo de vida que nada tinha a ver com o nosso real rendimento.
Nos últimos anos, quantas vezes ouvimos isto na televisão, na rádio, lemos nos jornais? O reajustamento - novilíngua para empobrecimento generalizado do país via compressão de salários provocada pelo aumento de desemprego e pela flexibilidade das leis laborais - precisava de um bode expiatório para se tornar normal, a "nova normalidade", expressão que aparece na moção de Pedro Passos Coelho à liderança do PSD. O bode expiatório foi o nosso consumismo e a dependência do crédito. Criada a culpa nos portugueses, tem sido muito mais fácil passar esta ideia de "nova normalidade". Passou a ser normal o despedimento fácil, a precariedade, o falso recibo verde, os salários em atraso e a dependência de uma parte da população da caridade oferecida pela "economia social" - mais novilíngua, esta produzida por Cavaco Silva, o cúmplice número um do Governo, referindo-se às instituições de solidariedade social financiadas pelo orçamento e um dos principais meios de escoamento do exército de desempregados via programas de inserção - estes funcionam como uma espécie de voluntariado forçado, obrigando quem recebe subsídio a trabalhar nas tais instituições.
A ilusão das estatísticas alimenta outra ilusão: a de que o fim do programa de ajustamento representará uma mudança na vida das pessoas. O maior símbolo desta ilusão é o relógio de Portas, marcando as horas e os minutos para o fim do programa. A farsa encenada pelo irrevogável é um escarro na cara de todos os portugueses atirados para a pobreza, os portugueses cuja vida não vai mudar depois de Maio. Os portugueses que têm vários anos de miséria mais ou menos envergonhada pela frente.
O discurso contra o crédito fácil e o modo de vida dos portugueses, recentíssimo, parece no entanto ter sido rapidamente esquecido nesta nova fase da governação, marcada pelo ciclo eleitoral que se aproxima. O milagre económico entrou no discurso governamental e inflitrou-se no quotidiano. O Governo pode dar-se ao luxo de esquecer o que andou a dizer nos últimos três anos; agora, o novo normal é sortear automóveis topo de gama para oferecer aos bons portugueses que pedem factura. O bom português, o humilde e poupado que não podia comer bifes todos os dias, agora tem de pedir factura na esperança de que lhe saia na rifa governamental o Audi A8 a que tem direito. Não interessa que esta operação vá custar a todos nós vinte milhões de euros - quase tanto como os Mirós e o equivalente a 41 237 salários mínimos -; não interessa o ridículo da encenação, que pode por exemplo implicar que quem tem dívidas ao fisco não chegue a gozar o automóvel que recebeu, ou que por exemplo possa levar a que um beneficiário do RSI perca o subsídio por passar a ter património, no caso de ganhar o carro. Não interessa; interessa estimular o consumo novamente, porque tem sido através deste que a economia vem recuperando. E interessa criar novamente a ilusão de um prémio fácil. O provincianismo pífio da medida concorre, de forma repugnante, com a hipocrisia do discurso dúplice, entre o miserabilismo e o novo-riquismo.
Atirados para um reino surreal, somos confrontados diariamente com um "novo normal" indigno e desumano, como se existissem dois mundos paralelos: o do discurso governamental e a realidade, tão desesperada como há dois anos. Tudo é possível.