A grande normalização
"It's like déjà vu all over again"
Yogi Berra
Os movimentos da extrema direita apresentam um paradoxo: são nacionalistas, mas possuem uma rede de cooperação internacional - participam em congressos, apoiam-se expressamente durante as eleições. Todos esses movimentos adotam as mesmas estratégias de comunicação, defendem as mesmas bandeiras e exploram os mesmos medos e preconceitos, mobilizando os piores instintos dos cidadãos.
Uma das técnicas mais usadas consiste em puxar aos poucos os limites do que é aceitável na esfera pública. O objetivo consiste em estar sempre fora do limite, porém quase dentro - usando uma metáfora desportiva é agir como Inzaghi fazia com o fora de jogo. No caso de surgir uma reação mais adversa, a resposta nunca é corrigir ou pedir desculpa, mas sim recorrer à técnica da vitimização: "era ironia ou uma piada e já não se pode brincar com nada". O alegado recuo é o que constitui a verdadeira ironia, e tal é reconhecida assim pelos seus seguidores mais atentos. Com o recuo, sendo apenas aparente, a trela estende-se gradualmente, podendo ser puxada aqui ou ali, mas mantendo-se cada vez mais longa.
Nesse sentido, e com todos os exemplos existentes por todo o mundo, é, no mínimo, exasperante assistir à nossa incapacidade de agir perante este movimento político em Portugal, sobretudo da parte dos OCS tradicionais, que dão uma atenção desmesurada a esse partido em relação a outras figuras políticas, confundido o que é interessante com o que é importante. Esta contínua normalização existente nos espaços noticiosos e nas opiniões veiculadas por inúmeros comentadores, leva a que lentamente essas ideias e formas de pensar e agir se estão a tornar legítimas, invadindo e envenenando o espaço público, criando referências de pensamento e discussão.
No passado fim de semana, foi inclusivamente defendido que os valores defendidos por esses movimentos são diferentes, mas que não devem ser demonizados, porque estamos em democracia. Não se apercebendo que é precisamente por estarmos em democracia que aqueles valores de xenofobia, discriminação das minorias, etc., devem ser demonizados (diferentemente é a demonização dos seus eleitores, das suas preocupações). Com efeito, como escreveu Elizabeth S. Anderson: "The democratic ideal seeks a culture and political institutions that realize society as a system of equal citizens”.
Outra estratégia utilizada pelos OCS foi analisar as medidas concretas que foram propostas. Esta estratégia tem o seu mérito para comprovar a vacuidade e impraticabilidade dessas propostas, e quais os verdadeiros interesses defendidos (por exemplo, no programa apresentado é proposta uma redução dos salários e dos direitos dos trabalhadores). No entanto, com esta atuação corre-se o risco de não compreender que o seu apelo é essencialmente emocional, imune a discussões técnicas. Equivale, assim, a analisar os benefícios nutricionais de gomas, quando se sabe que não é isso que explica o seu consumo.
Porventura o problema de analisar profundamente as verdadeiras razões para a ascensão destes movimentos é que tal poderá provocar um abalo nas fundações políticas dos últimos quarenta anos, o que é indesejado pelo statu quo. Polany demonstrou a responsabilidade do liberalismo económico na ascensão do fascismo e agora parece repetir-se. A ascensão e vitória do neoliberalismo constituem, conforme escreveu David Graeber, um sistema totalizante que subordina tudo - todos objetos, todos os pedaços de terreno, todas as capacidades e relações humanas - ao que existe a um único sistema de valorização. Num famoso discurso de David Foster Wallace, ele conta a história de dois jovens peixes a nadar quando passam por um outro peixe mais velho, que lhes acena e diz "Bom dia, rapazes! Como está a água?" Os dois peixes continuam a nadar até que um olha para o outro e pergunta "Mas que raio é água?”. Ora, todas as análises serão sempre incompletas sem uma reflexão profunda sobre a “água”: a cultura dominante em que vivemos. E uma das características dessa cultura dominante é a ascendência da TINA (There is No Alternative).
Isto provoca duas situações que são prejudiciais para a sobrevivência da democracia. Por um lado, se o eleitorado considera que a sua vida não irá alterar substancialmente com a vitória de um ou outro dos principais partidos, porquê se dar ao trabalho de votar — provocando um aumento do niilismo e do cinismo. E ao ir votar, por que não votar em um que tenha propostas quanto a outras matérias, sabendo que economicamente tudo se manterá igual? Por outro lado, ”citizens exercise their freedom in a democracy through voice, not just exit. Their freedom is the power to take the initiative in shaping the background conditions of their interactions and the content of the goods they provide in common. It is a freedom to participate in democratic activities, not just to leave the country if they disagree with the government”. Ao suprimir a consideração de alternativas, restringimos o exercício da liberdade na democracia. Nesse contexto, por que não considerar a possibilidade de desmantelar o próprio sistema ou atribuir culpados, seja a fontes externas ou a grupos distintos do nosso?
Para Marx, o que distingue os humanos de outros animais é que os humanos produzem coisas numa forma auto-consciente. Assim, o que nos distingue não é a “razão”, mas a imaginação. A inteligência humana é, deste modo, inerentemente crítica e assim sempre capaz de imaginar alternativas. É imperativo construir e discutir alternativas de maneira democrática e racional. Esta é a análise em falta, porque como escreveu Morris Cohen: “Is characteristic of the low state of our philosophy that the merits of capitalism have been argued by both individualists and socialists exclusively from the point of view of the production and distribution of goods. To the profounder question as to what goods are ultimately worthwhile producing from the point of view of the social effects on the producers and consumers almost no attention is paid”.