A esquerda e a vontade de poder
As eleições autonómicas em Espanha vieram confirmar a mudança que vinha acontecendo nos últimos anos. A emergência de movimentos de cidadãos e de novos partidos e movimentos, à direita e à esquerda, culmina na implosão do bipartidarismo que tem sido regra desde o fim da ditadura. O PP venceu em nove das 13 regiões autónomas, mas perdeu todas as maiorias absolutas que detinha. Em Madrid ganhou, mas fica dependente de uma eventual coligação entre o Ahora Madrid (movimento que integra o Podemos e cidadãos de outros partidos de esquerda, como o Equo, equivalente ao LIVRE, tendo recebido o apoio também do partido comunista de Madrid e da Izquierda Unida nacional) e o PSOE. E em Barcelona, ganhou o Barcelona en Comú, outro movimento que integra o Podemos e também o Equo, derrotando o CiU, de direita. Agora precisa de apoio para obter maioria, e o partido socialista da Catalunha será o parceiro mais provável. Somando tudo, o PP perde onze pontos percentuais em relação às últimas eleições autonómicas e o PSOE dois pontos. Nas comunidades onde não conseguiu maioria, o PP corre ainda o risco de ver o Podemos aliar-se ao PSOE para formar Governo.
Para além do fim do bipartidarismo, a principal lição que podemos retirar das eleições de ontem foi o esforço realizado por toda a esquerda (incluindo o Podemos) para conquistar o poder à direita, representada pelo PP mas também pelo movimento Cidadãos. Os diversos partidos à esquerda do PSOE, incluindo o partido comunista, deixaram de parte divergências e juntaram-se em diversos municípios e regiões, assumindo que é mais importante derrotar as políticas de direita do que manter-se entricheirado nas diferenças. O esforço provavelmente estender-se-á ao período pós eleições, tendo vários destes movimentos já admitido negociações com o PSOE para a formação de maiorias.
Não há trincheiras que não possam servir de rampa para outros voos. A esquerda espanhola mostra um caminho. É verdade que falamos apenas de eleições autárquicas, mas de qualquer modo é difícil não comparar esta vontade de abertura e de convergência da esquerda em Espanha (até o partido anti-sistema Podemos construiu pontes e forjou alianças para chegar ao poder) à desunião e entricheiramento da nossa esquerda. Blindados na sua pureza ideológica, PCP e BE continuam a queimar possibilidades. Isto é um erro táctico, mas também estratégico. Táctico porque a soma de toda a esquerda é bastante superior aos votos da direita. Vivemos num país onde, de acordo com as sondagens, cerca de 65% dos eleitores votam à esquerda. No entanto, é a direita que governa. E é aí que reside o erro estratégico. Os valores da revolução têm sido sistematicamente destruídos pelos sucessivos governos à direita porque a esquerda nunca soube aproveitar a maioria sociológica de esquerda do país. Entretidos em jogos florais, os partidos de esquerda foram vendo o Estado Social sendo lentamente desmantelado, contra a vontade da maioria dos portugueses. Tem sido uma derrota que arde em fogo lento, tecida ao mesmo ritmo com que vão sendo transferidos recursos do factor trabalho para o factor capital e a desigualdade vai aumentando, invertendo a marcha do progresso prometido pela revolução dos cravos. Ainda há tempo? Há sempre, mas é uma agonia ver como, apesar do brutal ataque revanchista da direita aos valores de Abril, a esquerda se mantém rigidamente fiel aos seus princípios e à sua pureza, recusando discutir alianças e convergências. Espanha pode ser um exemplo. Se não o seguir, a esquerda portuguesa irá continuar a intercalar derrotas e ténues vitórias durante muitos anos. Péssimas notícias para o país e para os portugueses.
Adenda: este post do Filipe Santos Henriques explica em pormenor e rigorosamente o que aconteceu ontem.