Da série "reformas estruturais" (malabarice, disse ele)
In TSF 27.11.2014
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In TSF 27.11.2014
A pobreza do léxico de Passos Coelho é já sobejamente conhecida. A sua oratória degradada, a tendência para o recurso à breijeirice mais rasca, os constantes pontapés na gramática (que por vezes fazem os seus discursos parecer relambórios de um débil mental) e a redução de ideias complexas a chavões simplórios que recorrem tanto a neologismos de economês como a eufemismos dignos de uma novilíngua new age (infinitamente menos complexa da que foi criada por George Orwell em 1984), transformam Passos Coelho num digníssimo representante da mediocridade generalizada dos políticos actuais, o oposto completo do que deveria ser um tribuno, um estadista, tal como essa figura é descrita n'A República, de Platão. Apenas a colocação de voz atenua as evidentes debilidades discursivas de Passos - e nem sequer vou começar a falar da pobreza de conteúdo e do domínio dos temas, ao nível de uns apontamentos Europa-América.
A verdade é que, apesar desta miséria intelectual, a ascensão dentro do PSD acabou por acontecer, e o seu percurso de glória culminou com a vitória nas legislativas. Parece que ele acha que vai ficar para a História. Poucos portugueses discordarão desta afirmação: Passos ficará para História como o pior primeiro-ministro em democracia, e ao pé dele até Santana Lopes resplandece em fulgor e brilhantismo. Parte do seu êxito como político assenta num bem oleada máquina propagandística (os génios discretos do Governo, contratados aos magotes para os gabinetes ministeriais) e numa das maiores ferramentas com que qualquer político pode contar: o esquecimento. Sobretudo dos eleitores, os que votaram nele acreditando que apenas seriam necessários uns cortes numas gorduras do Estado e não seria "necessário cortar salários nem pensões". A roda do tempo acabará por tudo levar, e foi apostando nesta evidência que Passos (e o Governo) desenhou a sua estratégia. Só assim se compreende que, uma vez mais, tenha repetido a expressão "ponto de viragem", apontando o ano seguinte como o tal, o da recuperação. Tinha sido assim em 2011, em 2012, em 2013. Sempre a mesma expressão, sempre a mesma crença no esquecimento, na credulidade e na estupidez dos eleitores. Esta projecção no futuro de um hipotético êxito apenas acontece porque o presente apenas tem para mostrar o fracasso, a derrota, o desastre. A estratégia de Passos apoia-se no mais débil dos pilares: a esperança. Mas é um recurso em última instância, apenas; projecta-se no futuro a felicidade (como Estaline fazia, com os seus planos quinquenais) porque o presente mostra à saciedade como tudo está a correr mal.
Um medíocre que atingiu o seu auge há algum tempo, confirmando o princípio de Peter, apenas pode confiar na sorte e em factores que estão fora do seu controle. Passos poderá ganhar as eleições se, por milagre, a economia crescer muito em 2015, se Costa vir a revelar-se uma desilusão, se a Europa desatar a consumir desenfreadamente. Se, se, se. Apenas deste modo. O ponto de viragem depende do acaso. E se podemos confiar em alguma coisa, é no passado. E o passado diz-nos que Passos se enganou em 2012, em 2013, em 2014. Seria preciso sermos bastante estúpidos para acreditarmos que em 2015 será diferente. O verdadeiro ponto de viragem apenas acontecerá no dia em que este Governo for corrido do seu lugar.
A moda para a nova estação parece ter chegado: pedir desculpa. Dois dias seguidas, dois ministros a pedir perdão pela asneira feita. Isto é novo, neste Governo. O que já conhecíamos eram outras tácticas de diversão, desde negar que se esteja a passar qualquer coisa de errado (o rigoroso Nuno Crato é useiro e vezeiro nisto e Paula Teixeira da Cruz também tentou, durante duas semanas, esta táctica da avestruz), até desvalorizar a dimensão do erro ou das consequências, passando pelo famoso "não me demito" proferido pelo líder da matilha, Passos Coelho, nos idos de Agosto de 2013.
O que poderemos fazer com estes dois pedidos de desculpa? Eu sei onde Crato e Teixeira da Cruz deveriam introduzir tais pedidos, mas isso não é para aqui chamado. A minha questão é outra: o que poderão fazer os principais prejudicados com as decisões dos ministros com o perdão pedido? O que poderão fazer os pais, os alunos e os professores que vão sofrer com a escolha da fórmula errada (o rigoroso matemático Crato ter metido água nesta área é mais do que irónico, é ridículo) no cálculo de colocação de professores? Pior: o que farão os advogados, os réus e os queixosos com as desculpas pedidas por Paula Teixeira da Cruz? O que fará o país com os atrasos nos processos, com a paralisação completa do sistema de justiça, com o regresso ao papel, à caneta, aos faxes e às gravações de julgamentos em cassete (nos tribunais onde ainda estavam guardados os gravadores)? Três anos, diz a ministra, sem sombra de pudor, até novo programa estar pronto. Tudo parado. Desculpas?
Aquilo de que parecem padecer tanto Crato como Teixeira da Cruz é de uma coisa muito simples: sentimento de impunidade (e não tinha sido a ministra a dizer que ela tinha acabado?). Sentem-se, desde o verão passado, desde que Passos Coelho meteu o presidente da República no bolso, livres para fazerem o que quiserem, como quiserem. O pedido de desculpas não tem qualquer valor de verdade, as palavras perderam a sua qualidade performativa. Com erros desta dimensão, o pedido apenas teria valor, seria sentido, se fosse ligado a uma acção: o pedido de demissão. Mas, por falta de estatura e de postura ética dos ministros ou do próprio primeiro-ministro (a ordem deverá ter vindo dele), não há consequência na actuação.
Num país que valorizasse o mérito, os crimes destes dois ministros há muito teriam tido castigo. Crato, por repetição (desde que tomou posse, não há início de ano escolar que corra bem), Paula Teixeira da Cruz, pelo facto de ter deitado abaixo o terceiro pilar da democracia, o poder judicial. Não há mérito neste Governo, nem competência. Apenas um estertor prolongado impulsionado pela inoperância activa do presidente da República e pela apatia generalizada dos portugueses. Tudo se passa, e passará, assim, até às legislativas. E o país a andar para trás. Anos, décadas. O pó das ruínas pairará durante muito tempo.
- Isto está complicado.
- O quê, stôra?
- A execução, Pedrinho. Não vamos lá, a este ritmo. E com o TC a chumbar as nossas medidas, ainda menos.
- Aqueles cabrões...
- Pois é, Pedrinho. Não diga palavrões.
- Ó stôra, e que fazemos? Não podemos aumentar os impostos, que já só falta um ano para as eleições e ainda quero ganhar esta merda.
- Não diga palavrões. Acho que só nos resta aumentar impostos. Temos aquela coisa da almofada orçamental, mas combinámos que isso é apenas para gastar em 2015, mesmo em cima das eleições.
- Sim, e não podemos esquecer o dinheiro que ainda vai para o BES, pelo menos até às próximas eleições.
- Isso já está de parte. Desde que continuemos a ter alguma coisinha para pagar os juros, tudo bem. Foi para isso que introduzimos a contribuição no IRS, lembra-se, Pedrinho?
- Pois é, pois é, stôra. Já me esquecia disso. Se calhar devia ter feito mais do que copiar na cadeira de Finanças Públicas...
- Lá isso tinha feito bem, Pedrinho. Mas agora não interessa nada. O Pedrinho até tem-se portado bem, sempre foi bom a fingir ser uma coisa que não é...
- Obrigado, stôra. Só o sacana do La Féria não percebeu a minha verdadeira vocação.
- Deixe lá isso, menino, que o seu pai está muito orgulhoso de si. E eu também. Mas adiante. Temos mesmo de aumentar impostos, não há outra maneira. Mesmo que cortemos nos hospitais, nas escolas e nas prestações sociais, continua a faltar dinheiro.
- Isso não pode ser, que o outro não quer ficar mal visto e perder o resto do eleitorado que lhe resta. Se a prima-dona arma mais uma fita, o senhor presidente passa-se de vez e ainda aceita a demissão, de forma completamente irrevogável.
- Invente lá qualquer coisa então, para disfarçar. Telefone aí ao Miguel, quer dizer, a um dos dois: se o Relvas não atender (ainda está amuado consigo), pergunte ao Maduro, que ele até sabe umas coisas.
- Ah, bem pensado, stôra.
(...)
- Estou, Miguel?
(...)
- Sim, sou eu, o Pedro.
(...)
- Epá, não desligues, caraças, estou aqui num aperto.
(...)
- Já te pedi desculpa, pá. Sabes muito bem que tinha mesmo de ser, estavas a queimar tudo.
(...)
- Não digas isso, pá, eu encaminho uns quantos clientes para a tua nova empresa. É uma mina, sabes bem, melhor do que a Tecnoforma.
(...)
Ah, é assim? Eu ligo ao outro Miguel, juro.
(...)
(...)
(...)
- Ora, foda-se.
- Então, Pedrinho, o Miguel não o ajuda?
- Continua chateado. Criancices. Vou ligar ao outro Miguel.
(...)
- Estou, Miguel?
(...)
- Pedro? Pedro quem? Não conheço nenhum Pedro?
(...)
- Lomba? Está numa lomba? Realmente não o estou a ouvir muito bem... ouça lá, não sei quem é, mas o seu trabalho é passar-me a chamada. Não está aí o senhor ministro?
(...)
- Secretário? De Estado? E fui eu quem o nomeou? Não me lembro... olhe, isso agora não interessa nada, passe-me aí o senhor ministro.
(...)
- Estou? Miguel? Aqui fala o Pedro. Ouça lá, olhe que o seu secretário tem de ser mais diligente a passar as chamadas.
(...)
- Ele não é assim tão novo, já está há alguns meses aí no gabinete. Não lhe deu o manual de formação para secretários de Estado? Aquele em 12 passos? Olhe que o Moedas aprendeu por aí, e veja lá onde ele já está...
(...)
- Ora, bem, se ele tem esse problema, deixe estar. Sempre cumpre a cota dos deficientes. Mas liguei-lhe para falar de outra coisa.
(...)
- Não, não é isso, deixe lá a RTP em paz que eles agora estão a fazer um bom serviço. Não aprendeu com o outro Miguel? O que eu preciso é de uma manobra de diversão para distrair as pessoas. Estamos à rasca com a execução orçamental.
(...)
- Sim, precisamos de cortar ou aumentar os impostos.
(...)
- Outra vez isso? É sempre a mesma coisa. Não consegue fazer outra coisa se não lançar notícias que se vêm a revelar falsas? Já o outro Miguel fazia isso.
(...)
- Bom, deixe lá, homem, não fique ofendido. Então qual é o plano?
(...)
- Sim, ah, essa é uma variante interessante. Está a ver, Miguel, sempre temos alguma imaginação, colega. Então, vamos lá ver se eu percebi bem: dizemos ao Luizinho para lanças umas balelas sobre aumento de impostos na TV, certo? Depois eu nego veementemente, e tal, dizendo que este ano, não. Depois, esperamos que saiam as notícias falando dos inevitáveis cortes na Saúde e na Educação, culpando o Tribunal Constitucional, é isso?
(...)
- Ah, bom toque final. Se falarmos também da justiça as pessoas compreendem melhor. Olham para o lado, e como de qualquer maneira acham que os juízes são uns chupistas, ainda entalamos os cabrões do TC.
(...)
- Epá, não seja fino, eu digo os palavrões que me apetecer, eu é que sou o primeiro-ministro. Olhe, até logo, vou já ligar ao irrevogável, antes que ele faça uma birra ou ligue ao arquitecto do jornal a lançar a confusão. Mãos à obra!
Já não é a primeira vez que este Governo protagoniza um malabarismo deste tipo.
Em março, o Governo aprovou em Conselho de Ministros a suspensão do acesso à reforma antecipada. Atropelando o Regimento do Conselho de Ministros e contando com o alto patrocínio do Presidente da República, a medida foi aprovada em CM, não foi divulgada no comunicado que se lhe seguiu (como consta do Regimento) e durante cerca de uma semana foi propositadamente escondida dos portugueses.
Quando finalmente a "surpresa" foi publicada em Diário da República, tinha a sua entrada em vigor para o dia imediatamente seguinte.
Assim, indo contra os procedimentos definidos, apanharam-se desprevenidos tudo e todos, em particular aqueles que estavam a planear apresentar o pedido de reforma antecipada a que tinham direito.
Ontem, domingo, a lamentável brincadeira repetiu-se, ainda que em moldes distintos. O irrevogável Portas e a Miss Swaps ter-se-ão, alegadamente, encontrado. Num formato totalmente inovador para um Conselho de Ministros (composto apenas por 2 ministros e sem que ninguém soubesse da sua realização) e mais uma vez com o alto patrocínio do Presidente da República, trataram de aprovar e promulgar num instantinho um diploma com o regime aplicável aos bridge banks, de forma a tornar possível a solução que foi anunciada ao final do dia por Carlos Costa.
E, esta manhã, voilá: sem que ninguém tivesse falado no assunto (designadamente, o Governo ou o PR) surge a publicação, em Diário da República, do Decreto-Lei n.º 114-B/2014, de 4 de agosto, elaborado e promulgado num Conselho de Ministros alegadamente realizado na véspera e com entrada em vigor no dia seguinte.
Em bom rigor, a verdade é que isto já não surpreende. Um Governo incapaz de elaborar um Orçamento de Estado dentro dos parâmetros da lei, que desafia e pressiona publicamente o Tribunal Constitucional e que não tem qualquer respeito pelos mais elementares preceitos democráticos, surpreenderia bastante se agora se mostrasse minimamente preocupado com este tipo de questões.
Adenda: ao que parece, os ministros nem sequer se encontraram - trocaram uns emails. E, de acordo com Poiares Maduro, a prática não é inédita. Um Governo muito inovador, este.
Imagem: Mário Cruz / Lusa (arquivo)
Carlos Costa, governador do Banco de Portugal:
15 de Julho de 2014 - Governador do Banco de Portugal volta a garantir que o Banco Espírito Santo está sólido e que não há risco sistémico.
18 de Julho de 2014 - O governador do Banco de Portugal assegura que o BES está sólido.
Maria Luís Albuquerque, ministra das Finanças de Portugal:
17 de Julho de 2014 - "Não estamos a preparar a recapitalização do BES. Nada da informação que temos indica que a recapitalização pública seja necessária"
Passos Coelho, primeiro-ministro de Portugal:
Cavaco Silva, presidente da República Portuguesa:
E é assim, estamos entregues a esta gente.
Como foi bonita a recente homenagem a um dos nossos maiores poetas, Sophia. Sophia, um nome só, entoado com a mesma sonora empáfia com que se diz Homero pela presidente da Assembleia da República. Como foi bonito, o corpo morto transportado em direcção ao teu segundo repouso eterno, um corpo guardado por cavalos, pompa e circunstância, cavaleiros de pluma na cabeça, elmos brandindo dourado ao sol. Como foi bonito, os discursos, eivados de poesia, metáforas e grandiloquência escorrendo das frases como mel sobre o doce âmbar da literatura. Como foi bonita, a presença no cortejo das figuras fátuas do regime, do primeiro-mininstro à reformada Assunção, todos muito compostos e sérios (é gente muito séria, esta, sabemos). O país, este país com novecentos anos de História e nove séculos de poesia, levou ao prometido Panteão a nossa maior poetisa, Sophia, apenas um nome, um apenas, a "justa homenagem" a uma figura que transcenderá gerações.
Como também é bonito o facto da poesia de Sophia não estar nos currículos escolares, a poesia tão emotivamente homenageada nos discursos e nas televisões. A poesia de Sophia, pompa e vazio, flor na lapela do casaco dos políticos que a decidiram retirar dos currículos escolares. Como Sophia, oh Sophia, iria gostar da honra, e da glória, em desfavor do desaparecimento, do desconhecimento da geração que se seguirá. A reformada Assunção e o Grande Líder Coelho serão certamente as pessoas certas para levar Sophia (oh Sophia) ao merecido panteão, o sepulcro onde apodrecem os poetas.
Como será bonito também vermos o ministro, Crato de seu nome, responsável por Sophia ter desaparecido dos currículos do Secundário, a homenagear Sophia, e a acabar agora com os dois únicos centros de investigação de Estudos Clássicos do país. Os dois únicos, o de Coimbra tendo como associados a maior helenista do país, Maria Helena da Rocha Pereira, e Frederico Lourenço, seu herdeiro e tradutor da Ilíada e da Odisseia. Sophia (oh, o teu nome é mar) adoraria saber que a sua amada Grécia, o seu amado Homero, são agora considerados obsoletos, redundantes, e indignos de receberem fundos do Estado português. A Antiguidade Clássica certamente não é rentável, já sabemos. Não interessa às empresas, como Coelho e Crato já disseram que deveria ser a investigação financiada pelo Estado. Que pode uma fábrica de enchidos fazer com uma Ode de Píndaro? Que uso uma empreendedora fabricante de um aplicador de Nutella poderá dar a uma tradução de Aristóteles? Nenhum, claro. No novo país que Coelho pacientemente está a construir, não há lugar para o passado, apenas para um radioso futuro.
Sophia, oh Sophia, tu, que do Panteão onde foste posta olhas o país que carregou o teu corpo morto até ao túmulo onde se celebra o vazio, que acharás do apagamento dos teus poemas, que acharás do esquecimento da tua amada Grécia? Sophia, na boca desta escória que agora domina Portugal, o teu nome apaga-se. O pior que te poderiam fazer, fizeram-no. E tudo continua.
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