"By gaining greater knowledge of how others think, we can become less certain of the knowledge we think we have, which is always the first step to greater understanding."
Julian Baggini
A História não se repete, mas rima. Para encontrar a rima perfeita dos nossos tempos deve-se recuar ao romantismo do início do século XIX. Este período caracterizou-se por enfatizar a emoção, o individualismo e pela glorificação do passado e da natureza. Surgiu como uma reacção à revolução industrial, ao racionalismo e às normas políticas e sociais do Iluminismo — oposição à modernidade. Outra das suas ideias e um dos seus legados mais importantes foi o movimento nacionalista.
É impossível não reconhecer nestas características o actual zeitgeist: o movimento anti-vacinas; a moda da "união com a natureza", das dietas paleo e dos produtos sem químicos (ou lá o que isso possa querer dizer); os negacionistas do aquecimento global; a exacerbação do indivíduo; o ressurgimento de movimentos nacionalistas. Mas como se chegou aqui?
As "real news"
Nos últimos tempos o foco da discussão tem sido as fake news e os seus efeitos no sistema democrático. No entanto, não deverão ser igualmente analisados os efeitos dos ciclos noticiosos de 24 horas como argumenta Tyler Cowen num artigo da bloomberg?
As instituições nunca estiveram tão expostas ao crivo público como estão hoje — e ainda bem, assim como é positivo o aumento do nível de exigência sobre estas. Álvaro de Campos sabia porém que somos todos vis e erróneos nesta terra, se submetidos a uma análise minuciosa e constante. Uma das principais alterações nas sociedades contemporâneas foi a redução ao mínimo do custo da informação bem como a facilidade no seu acesso, isto é, nunca, como hoje, foi tão simples e barato consumir informação. Por sua vez, as linhas editoriais estão desenhadas para relatar erros e insuficiências e sustentar ao máximo qualquer polémica que possa dar audiência. Deste modo, a facilidade de acesso à informação, as linhas editoriais e o intenso ciclo noticioso amplifica a percepção pública das falhas das organizações, sobretudo comparado com um passado em que a exigência e a transparência eram menores.
Se estes factores forem menosprezados a sociedade é tomada pelo cinismo — um instrumento de defesa sofisticado destinada a justificar compromissos, a desculpabilizar a realidade, permitindo que os seus utilizadores planem sobre esta — e pela desconfiança, e cria igualmente uma nostalgia de um passado ficcional que teria sido mais nobre e ético. Assiste-se à submissão resignada do sujeito ao mundo que o rodeia: a aceitação consciente do estado das coisas actuais e futuras, bem como o seu aproveitamento sob o manto de "todos assim o fazem". Revelador deste cinismo é a própria análise dos media do discurso político que centra-se sobretudo na sua vertente táctica ou de marketing, em vez da sua sinceridade ou na capacidade de ser inspirador.
Ao mesmo tempo, a crise financeira de 2008 e a resposta ineficaz, em muitos casos errada, aos seus efeitos conjugada com o húbris das elites potenciou o crescimento do cinismo e acelerou a desconfiança no sistema político e nas instituições em geral (financeiras, universidades, media tradicionais).
Num contexto de crise das instituições os factos são desvalorizados, uma vez que tal como defende Latour "facts remain robust only when they are supported (...) by institutions that can be trusted, by a more or less decent public life, by more or less reliable media.”
Liberalismo
O liberalismo, a actual ideologia dominante, diz-nos que "o eleitor é soberano, o cliente tem sempre razão e que devemos pensar por nós próprios e seguir o nosso coração"*. Tal como no individualismo do romantismo esta visão de liberdade ilimitada não consegue sobreviver ao dilema do relativismo que gera ou as perversões de tirania e exploração que produz. Na verdade, no seu extremo a opinião individual, o que eu sinto, predomina sobre tudo, inclusivamente a verdade, o que origina uma epidemia do efeito Dunning-Kruger. Temos então uma cultura que sobrevaloriza a opinião individual e uma estrutura institucional demasiado enfraquecida para sustentar a "robustez dos factos".
Por outro lado, a infinitude da internet alimenta o viés da confirmação (a tendência de lembrar, interpretar ou pesquisar por informações de maneira a confirmar crenças ou hipóteses iniciais). Esta predisposição abre espaço às "fake news", cujo papel não é mais do que reforçar as crenças dos seus destinatários. Conforme escreveu o filósofo inglês William Kingdon Clifford "No real belief, however trifling and fragmentary it may seem, is ever truly insignificant; it prepares us to receive more of its like, confirms those which resembled it before, and weakens others; and so gradually it lays a stealthy train in our inmost thoughts, which may someday explode into overt action, and leave its stamp upon our character". A conjugação de todos estes elementos cria a tempestade perfeita: as crenças individuais ficam reforçadas e na ausência de espírito crítico há a recusa de quaisquer factos e opiniões desafiantes, chegando a ser hostis a estas.
Política identitária
O indivíduo, já sem confiança nas instituições cada vez menos capazes de lhe dar respostas perante um presente cada vez mais incerto e volátil, sente-se impotente e sozinho. Em situações de incerteza a tendência é agarrar com mais força ao que se tem, recear o desconhecido e, paradoxalmente ou não (o ser humano é um animal social), recuar ao tribalismo.
O problema do tribalismo é que encerra a discussão em si mesma: há uma atitude defensiva, numa visão maniqueísta de nós contra os outros, que se vai auto-alimentando. Neste campo cresce o nacionalismo e o egoísmo; deixa-se de acreditar que é possível defender alguma posição sem que exista algum incentivo, a manutenção de algum privilégio ou um qualquer interesse oculto. A sociedade fica entrincheirada em diferentes facções, sem lugar a compromissos, cada vez mais longe do ideal de justiça de Rawls, colocando em causa o sistema democrático.
*A nomeação em 2006 do indivíduo como pessoa do ano pela revista Time talvez tenha sido um prenúncio dos nossos dias.