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365 forte

Sem antídoto conhecido.

Sem antídoto conhecido.

06
Jun13

Take a look at me now

David Crisóstomo

Tinha perdido o passe. A senhora que acabara de entrar no autocarro da TST em Alcântara às 18h35 estava em pânico: não tinha passe. Não sabia dele, não estava nos bolsos, não estava na mala, não estava no chão. E começou a chorar. A chorar e a soluçar. Não devia ter mais que 55 anos. Soluçava, sentada no terceiro lugar a contar do motorista, do lado esquerdo. Revirava a já velha mala em busca do documento. Não o encontrava. Tirava tudo e nada. Em lágrimas, levantou-se e, com o seu pequeno porta-moedas, pagou o bilhete ao motorista. 4 euros e 10 cêntimos. De olhos vermelhos e cabelo desarranjado, explicava a situação ao motorista. Ou tentava. Meio autocarro, que ia cheio, estava a tentar entender o que se passava. E foi então que ela desabafou ao motorista num tom audível e desesperado: "Eu não sei o que fazer. O mês acabou de começar e eu já tinha comprado o passe. São 80 euros. Eu não tenho esse dinheiro. Não sei o que fazer". Voltou a chorar. Uma senhora de idade sentada ao lado da porta tentava consolá-la. "Não fique assim, vai ver que o encontra". Uma outra senhora sentada ao meu lado acrescentou: "Não se preocupe, eu também já perdi o passe uma vez e depois fui Cacilhas [terminal dos autocarros] e tinham-no encontrado". Tentando recompor-se, a senhora foi se sentar no seu lugar. Voltou a procurar na mala. Mas nada. Levou as mãos à cara num acto de aparente desesperança angustiante. Explicou a um casal do lado que vivia num pequeno apartamento longe de Almada, longe de Lisboa, longe do seu emprego. Tinha estado desempregada mas conseguira há uns meses um trabalho numa empresa de limpezas. Recebia mal e a más horas, mas recebia. Tinha um filho, cuja a idade não revelou. Vivia com ele. Aparentemente, só com ele. E estava desesperada. Um rapaz ofereceu-lhe um lenço para limpar a cara. Agradeceu, envergonhada. Agradecia as palavras amáveis que ia ouvindo de outros passageiros e pedia desculpa. Pedia desculpa mas não sabia o que fazer: não tinha dinheiro para comprar outro passe. Não tinha dinheiro. E tinha medo.

  

Isto passou-se há umas semanas. Nunca mais vi aquela senhora, no autocarro ou fora dele. E ontem lembrei-me dela. Lembrei-me após ouvir as declarações do senhor primeiro-ministro. "Hoje Portugal e os portugueses são vistos como gente trabalhadora, cumpridora e honrada". Hoje. Antes não eram, portanto. Mas agora, depois dum processo económico lunático e desacreditado, que decorre há já dois intermináveis anos, já o são. Mas as consequências dessa credibilidade ganha, o desemprego inqualificável, a miséria indiscreta, um longo prazo inexistente, uma economia que insiste em não cumprir com os desígnios do mui credível Gaspar, tudo isso e tudo o que é mau e maligno, 'não é do processo de ajustamento'. Nem dos senhores que foram para além do processo de ajustamento. Estão inocentes. Foi a realidade, algo que não controlam, algo que desprezam, não lhes diz respeito. Não é com eles. Enquanto lá fora, na Amadora que Passos quis outrora administrar, se gritava e protestava, um saxofone, uma melodia de Phill Collins, soava na sala onde o senhor primeiro-ministro iria falar. Against All Ods. Quem diria que isto seria Portugal numa Primavera de 2013.

 

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«As circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.»
- Ortega y Gasset

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