A geração dos deputados inconstitucionais
Depois disto, um texto do Ricardo F. Diogo sobre a mesma temática:
Um deputado da nação pode desprezar a Constituição da República Portuguesa? Parece que sim. Em abono do deputado, sublinhe-se que não despreza apenas a Constituição. Pretende também revogá-la; e «revogar mesmo para escrever uma nova».
O deputado esquece-se que, não raras vezes, as constituições são filhas da pólvora. (Ou da ameaça da pólvora, no caso português.)
Em síntese, o que o deputado do CDS nos diz é que o seu partido tem vindo a mentir insistentemente aos seus eleitores em matéria constitucional.
Em 2011, o programa eleitoral do CDS propunha uma revisão tranquilizadora da Constituição. O partido prometia ter «uma atitude construtiva nessa revisão, visando, não um conflito ideológico» mas «o consenso».
Em 2010, apresentara na Assembleia da República um projeto de revisão constitucional – com tanto de ideológico como de cosmético – que visava «a supressão, no texto constitucional, de fórmulas e enunciados linguísticos indiciadores de um modelo de sociedade colectivista (v.g. “eliminação dos latifúndios”, “auto-gestão”, “apropriação dos meios de produção”)»; «a supressão no texto constitucional de expressões desajustadas face às alianças internacionais (v.g., “abolição do imperialismo”, “desarmamento geral”, “dissolução dos blocos político-militares”); ou a «a supressão do preâmbulo da Constituição».
Em 2005, o CDS fora já claro: expressões como essas são «preconceitos dogmáticos» e «ingenuidades ultrapassadas». Queria um texto constitucional ajustado à «economia de mercado».
É ir escavando.
Mas o que o deputado do CDS, Michael Seufert, agora torna claro é que, afinal, para ele[s], são as próprias bases da Constituição que estão erradas. Não o preocupa a estética da coisa. Quer, «mesmo», demolir e construir de novo. Não é por acaso que o diz.
O PS há muito que fechou as portas a uma hipotética revisão constitucional. Seguro conhece bem os planos do CDS e do PSD para a Constituição: arrasá-la. (Oxalá o Partido Socialista tenha isto sempre presente.)
Por outro lado, os sucessivos chumbos do Tribunal Constitucional a normas orçamentais aprovadas pelo PSD e pelo CDS são um pretexto conveniente para desresponsabilizar o Governo pelo total caos do país.
O Governo decidiu adotar uma postura hostil contra os juízes do Tribunal Constitucional, o que já foi criticado por todos os quadrantes políticos (com exceção do Presidente da República).
Quando o primeiro-ministro e os líderes das bancadas do PSD e do CDS, que o apoiam, dão este exemplo, é natural que os jovens dos seus partidos, sem qualquer pudor, anseiem por queimar etapas: atacando a própria Constituição.
O deputado do CDS sente-se autorizado a revogar leis fundamentais. É essa a sua solução final.
A questão não é menor. Seufert poderia ter apostado numa carreira de simples cidadão subscritor de uma "Petição pela revogação da Constituição". Mas não: escolheu candidatar-se a deputado por um partido que o legitima a desprezar a ordem constitucional. O que é muito grave. O pretexto para a revogação da Constituição é «garantir os direitos dos mais indefesos», «os que (ainda) não votam», isto é: os «contribuintes futuros». A linha de raciocínio é esta: a Constituição favorece os impostos altos e não gosta de cortes na despesa. A Constituição onera as gerações futuras com dívida.
Está enganado. Os impostos e a dívida são escolhas dos Governos e não da Constituição. A Constituição enuncia metas civilizacionais (como a Segurança Social), mas fá-lo "programaticamente". Que é como quem diz: se não for possível atingir essas metas, não se atinge.
O deputado considera que a «Constituição revanchista do 25 de Abril e do período revolucionário subsequente» trouxe «muito lixo».
Partindo do pressuposto que isto quer dizer alguma coisa, e tentando traduzi-lo, o deputado considera que a Constituição se vinga do período ditatorial anterior ao 25 de abril e que o período revolucionário que se iniciou nessa data foi um lixo (ou teve muito lixo).
São formas de ver as coisas... Não direi que o deputado defende o salazarismo porque admito que o erro de leitura seja meu. Quanto ao lixo revolucionário… comecei por advertir que as Constituições tendem a ser filhas da pólvora. No caso português, foi filha da septicémia mortal que a antecedeu. Não percebo se o deputado louva ou quer esquecer o Estado Novo.
Quer «uma Constituição que limite a acção dos governos e governantes face aos direitos, liberdades e garantias que devem ser cimeiros num texto fundamental». O deputado terá de decidir-se: ou quer uma Constituição hipergarantística (como a que temos e, no meu entender, bem) ou uma Constituição em branco.
Seja qual for a resposta, a visão do CDS também é ideológica. Porque o que defende não é uma tradicional constituição liberal que se limite a travar os poderes públicos face aos direitos dos cidadãos. Quer mais: quer uma constituição enxuta que dê margem de manobra para tudo e para nada.
O deputado só quer solidariedade intergeracional para o futuro. Receita e despesa. Não considera na sua equação o dado político. Tem uma visão das constituições em XLS.
A história do CDS com a Constituição é longa. Foi assim, a 2 de abril de 1976:
«O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: De acordo com a nossa norma regimental, com a nossa ordem de trabalhos, vamos proceder à votação global do articulado constitucional, que foi lido esta manhã, longamente, através de um grande esforço dos Srs. Secretários.
A votação far-se-á sistematicamente por levantados.
Os Srs. Deputados que votam contra, fazem favor de se levantar.
(Levantam-se os Deputados do CDS.)
Uma voz:- Reaccionários!
(…)
Os Srs. Deputados que desejam abster-se, fazem favor de se levantar.
Pausa.
Os Srs. Deputados que votem a favor, fazem o favor de se levantar.
(Levantam-se todos os Deputados, excepto os do CDS)
Aplausos vibrantes e prolongados de pé.
Vivas à Constituição.
É entoado o Hino Nacional por toda a Assembleia.»
Seufert quer uma nova Constituição? Terá de se fazer homem e ir pregar para o Aljube. Mas terá de pregar bem, não vá alguém cuspir-lhe na cara. Porque, ao CDS, a Constituição não deve nada.