A Real Mesa Censória dos Comentadores
Sócrates provocou tamanho ódio. Resmas de rancor e de cólera. É de facto impressionante. Como escreveu o Sérgio Sousa Pinto, "A política de Sócrates deve ter tido forte impacto negativo no sector da pedra lascada, atendendo à impressionante mobilização de trogloditas contra o homem."
Mas o que aqui me traz não é o ex-primeiro-ministro. Na sequência da patética guerra de petições e de todo o movimento de espanto e assombro houve certos comentadores que aproveitaram a maré para exprimir um novo manifesto libertador: fora com os políticos comentadores!
Esta nova ideologia impeditiva e libertadora do pecado da politica teve três defensores que destaco, uma improvável troika: Henrique Monteiro, Clara Ferreira Alves e Alberto Gonçalves. Os três vieram para os seus espaços de comentário defender que quem foi/é/possa ser 'politico' não deve comentar a actualidade pública, pois esse é um direito reservado aos de alma pura - isto é, àqueles que se abstêm de pertencer ou de revelar simpatia por um determinado partido politico. "É como permitir que um árbitro seja jogador" compara Henrique Monteiro, que acredita que ele, comentador diário e assíduo, tem o poder de expulsar agentes da democracia quando acha que estes cometeram 'faltas graves' ou algo do género (não lhe abalemos a fé). "Em todo o mundo civilizado, e em boa parte do mundo incivilizado, seria inconcebível que sujeitos de reconhecida militância partidária (ou com escancaradas pretensões à dita) fossem chamados a opinar regularmente acerca do universo dos partidos" cantarola Alberto Fernandes, que além de considerar democracias como a norte-americana coisas incivilizadas, terceiro-mundistas, bárbaras, ainda refere o estranho conceito do cidadão que 'tem escancaradas pretensões à militância partidária', esse estatuto altamente restrito, de obtenção dificilíssima, pois só aqueles que sabem preencher um papelito timbrado é que podem ter acesso a tal extravagância. E estou certo que a Clara Ferreira Alves está esquecida (a idade não perdoa) dos tempos em que frequentava diariamente a sede do Partido Socialista.
Os argumentos da trindade são os do costume: os 'políticos', essas bestas da sociedade, fazem comentário com a sua própria agenda partidária, opinam pensando nos seus interesses e nos do partido em que militam. São os interesseiros é o que é! A comentar a actualidade com base nas suas opiniões e ideologias - mas que pouca vergonha é esta?
Como qualquer cabeça pensante pode concluir o disparate deste raciocino é desmedido: o que me faz crer que pessoas como o Miguel Sousa Tavares, o Henrique Monteiro, o João Miguel Tavares, a Constança Cunha e Sá, o Pedro Tadeu, o João César das Neves, o Camilo Lourenço, a Clara Ferreira Alves, o Alberto Gonçalves, o Vasco Graça Moura, o Henrique Raposo, o Martim Avillez Figueiredo, a Helena Garrido, o Nuno Rogeiro, o Ricardo Araújo Pereira, a Teresa de Sousa, o Pedro Mexia, o Luís Pedro Nunes, a Graça Franco, o Luís Delgado, o João Marcelino, o Paulo Baldaia ou o Viriato Soromenho Marques sejam seres mais 'isentos' e 'independentes' para comentar seja o que for só por não estarem filiados em nenhum partido? Acreditamos mesmo que estas pessoas não têm os seus próprios interesses e as suas próprias ideologias? Que são puras e inocentes? E porquê limitar esta regra proibitória aos políticos, porque não aplicá-la também aos jornalistas já agora? E aos economistas? Aos juristas? Aos membros do clero? Aos historiadores? Aos filósofos? Aos gestores? Aos alfabetizados?
Este trio iluminado é apenas mais um grupo de sábios abastardados que cavalga a já monumental onda de populismo que corrói as bases das democracias europeias: os problemas e as causas da crise estão nos políticos que não têm soluções, que são todos malévolos, que roubam o povo e engordam à custa da miséria popular. Há que afastá-los da vida pública, gritam eles. Aos seus olhos nunca Aristóteles poderia exercer a arte do comentário público pois envolveu-se na actividade politica e, como tal, reflexões suas como a de que 'o homem é um animal político, por natureza' são obviamente desprezíveis e ilegítimas.
Quem tem cartãozinho de militante é cidadão de segunda, não pode falar, pois conspurcará a sociedade. Tem menos direitos que os seus compatriotas. Há que manter a sociedade limpa das suas opiniões. Só os puros podem opinar, pois eles estão iluminados pela divina independência.
Citando A.R., "A pulsão censória grupal é mais um dos sinais expressivos da crise. Validando a vingança ideológica e o discurso único, abrem a porta ao desígnio totalitário. A democracia é dramaticamente frágil nestes momentos."