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365 forte

Sem antídoto conhecido.

Sem antídoto conhecido.

06
Mar13

O descaramento dos algébricos

David Crisóstomo

 

Sua Excelência, o magnifico primeiro dos eruditos ministros, Pedro Manuel Mamede Passos Coelho, iluminado pela divina providência, afirmou recentemente, referindo-se aos protestos decorridos e por decorrer, que «não se deve confundir a árvore com a floresta»


Ora, houve uma manifestação no sábado passado, dia 2 de Março. Uma, salvo seja - 40 para ser mais preciso, pois ser preciso é necessário, o Excel não perdoa. Esta manifestação, convocada por um movimento cívico sem ligações orgânicas a nenhum partido politico ou sindicato, tinha como objectivo primordial incitar os cidadãos portugueses a virem para a rua manifestarem-se contra o 'caminho correcto' padronizado por este governo e patrocinado por três instâncias internacionais. Pretendia-se que este protesto demonstrasse a rejeição das politicas cegas e dementes dum bando de impreparados, trapaceiros e ignorantes que desde Julho de 2011 dita os destinos da nação. Contestaria-se a legitimidade destes governantes nas ruas. As manifestações aconteceram. Os portugueses saíram de casa, enraivecidos e desgastados, contra a insanidade social que uns quantos mestres da busca pela simplicidade do conhecimento permanente lhes querem impor. Manifestações que levaram uma invulgar quantidade de cidadãos às ruas, de todas classes, faixas etárias e orientações politicas. Ninguém pode negar isto.

 

Ninguém? Think again.

 

Desde que a hipótese de existir um novo 15 de Setembro foi levantada, as mentes da pequena pequenez que ainda apoia este governo andaram a correr numa azáfama de avisos e notas sobre o que tal seria, o que representaria, como sucederia. A Catarina já explicou e bemmodus operandi daqueles que têm assim um certo desconforto com artigo 45º da CRP. Todavia, há uma nova modalidade que lhe escapou - o dos numéricos de manifestações. Desde que a Grândola foi cantada naquela tarde de sábado, que magnos contadores, paladinos da matemática e do urbanismo racionalgritaram que não iam tolerar tamanho desprezo pelos números, não o iam permitir! E foi vê-los levantar a voz contra este atentado à seriedade estatística, contra este ataque desumano aos algarismos (curiosamente aquilo que o Gaspar faz com a numérica não lhes parece suscitar tamanha indignação, mas enfim, a cada guerreiro a sua guerra). E quase todos os argumentos resumem-se desta forma: "a manifestação não foi assim tão grande e magnifica e enorme e colossal e representativa porque havia espacinhos não-sobrelotados no Terreiro do Paço. Logo, tomem, inchem seus regabofianos irresponsáveis, bando de comunas e radicais". Ou seja, a questão essencial foi a pombalina Praça de Comércio e a forma como esta tinha sido preenchida de forma desonrada e dedignada por esta bandalha esquerdista. Pobre D. José I.

 

Além do ensurdecedor centralismo que tal demonstra (o país é Lisboa, o principal é o Terreiro do Paço e as suas arcadas, o resto é paisagem pitoresca), a argumentação (eles lá desencantaram alguma) chegou em três casos a ser patética: 'não pode haver tanta gente nas ruas, pois Lisboa têm 500 mil habitantes, portanto a magnitude do protesto é mentira' - ignora-se que uma grande fracção dos manifestantes que desceu a Avenida da Liberdade (ainda hão-de se pôr a contar os peões que havia nesta, just wait) era proveniente da área metropolitana de Lisboa (Almada, Amadora, Oeiras, Seixal, Loures, etc...), ou seja a população da cidade é um dado irrelevante e estulto; 'olhem como esteve a praça cheia no dia da missa do Papa, olhem olhem e comparem' - sim, porque comparar uma missa campal (onde havia pessoas com cadeiras!), em que o palco, a área de segurança e os corredores livres ocupavam quase um terço da praça, com um protesto popular é algo perfeitamente lógico, brilhante até; 'as nossas imagens e estimativas são da hora em que se cantarolou o Grândola e representam a verdadeira dimensão da manifestação' - oh minhas albertas, na altura em que se cantou o Grândola ainda havia manifestantes a descerem a Avenida da Liberdade! Mas houve gente que levasse esta paranóia calculatória até ao extremo. Surripiei as imagens abaixo de alguém que tem factualmente demasiado tempo livre - confesso que me desmanchei a rir com o desespero numérico destes Pedro Nunes em potência:

 

 

Esta gente ignorou o conselho do primeiro-ministro de olhar para floresta e não para a árvore. Para muitos a manifestação cinge-se a isto. Se é maior que a última, menor que a penúltima, se encheu a praça, se a praça ficou vazia. São fanáticos deste último ponto (mas houve excepções que são de ressalvar). A praça não encheu, logo foi um fracasso, afirmam eles. Será que não entendem o ridículo de se focarem nos números e ignorarem o impacto inegável do protesto? Estou-me nas tintas para os números de contestatários, para os estudos, distribuições e cálculos que foram feitos. Eu estive lá, na de Lisboa, presenciei e fiz parte daquela massa humana, cinzenta e silenciosa. Vi os cartazes, vi os rostos lúgubres de idosos e jovens, homens e mulheres com um ar cansado mas resistente. Não partilho da ideia que aquilo tenha sido 'belo de se ver'. Nunca na minha vida testemunhei uma tão grande quantidade de concidadãos com um ar tão destruído. Quero lá saber dos números da organização ou dos números dos que são contra a organização, quem diz a verdade e quem mente, se o raio do terreiro não ficou hermeticamente fechado, se ficou a rebentar pelas costuras, se houve manifestantes a menos, se houve manifestantes que caíram ao rio de tão escasso o espaço na baixa - com uma taxa de desemprego que não pára aumentar (nem parará nos próximos tempos), que actualmente está nos 17%, quem é que raio quer saber da porra dos números da praça?! Mas em que país é que esta gente vive?!

 

A manifestação de 2 de Março foi grande e impressionante. E isto é indiscutível. O centralismo do terreiro parece que também levou muita boa gente a ignorar outro dado: nos últimos 30 anos, quantos protestos contra o governo houve em cidades como Portimão, Sines, Torres Novas, Chaves, Loulé, Angra do Heroísmo, Tomar, Ponte de Sor ou na Horta? Ou quantas vezes é que as representações diplomáticas portuguesas em Londres, Budapeste, Boston, Estocolmo ou Barcelona tiveram manifestantes à porta? Se a praça encheu ou deixou de encher, isso são tópicos à Catroga, por favor, tenham orgulho.

 

Sua Eminência, o grandioso chefe do governo português, Pedro Manuel Mamede Passos Coelho, num momento de alta sapiência, referiu hoje, dias depois das manifestações, que a medida mais sensata para combater desemprego seria baixar salário mínimo. O 2 de Março não chegou.

 

 

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«As circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.»
- Ortega y Gasset

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