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365 forte

Sem antídoto conhecido.

Sem antídoto conhecido.

04
Mar13

Profissionais anti-rua

Catarina Pereira

Não há manifestação, greve ou protesto de qualquer coisa neste país que não faça os profissionais anti-rua saírem do armário. E não se pense que falamos de uma tarefa fácil, porque não está ao alcance de qualquer um tentar, ao mesmo tempo, defender uma política destrutiva e desvalorizar as vozes dos portugueses que não aguentam mais.

O trabalho começa dias antes. A primeira tentativa parece básica, mas tem sido eficaz. «A manifestação é muito política», dizem. Com isto, afastam aqueles crentes numa sociedade sem partidos, sem organizações, sem movimentos, sem activistas, onde os bons superam os maus só porque deve ser assim. Essa sociedade, lamento, mas não existe, a não ser que acreditem no Pai Natal.

Nunca fui a uma manifestação que não fosse política. Até porque o objectivo, normalmente, é protestar contra as políticas de alguém. O povo não sai à rua porque, num sábado qualquer, se levantou indignado. Há sempre alguém que tem de organizar, de pensar, de promover uma manifestação. E eu, simples cidadã apartidária, não o faço porque não o sei fazer. Nem tenho tempo nem vontade para isso. Eu preciso dos partidos, das organizações, dos movimentos, dos activistas. Precisamos todos.

E quem acha que por ir a uma “manifestação política” está a tornar-se militante do Bloco ou do PCP é porque nunca foi a uma. Parece que alguns acreditam que à porta da manifestação há um senhor a perguntar se é do partido x ou y e, se não for, tem de sair. Quem entrar, tem obrigatoriamente de concordar com todas as palavras de João Semedo, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa, os alvos compreensivelmente preferidos dos jornalistas. E, durante a manifestação, cresce-nos a barba até ficarmos parecidos com o Che, altera-se a voz até soarmos a Fidel Castro e acabamos todos vestidos com t-shirts vermelhas da URSS. É assim que imaginam, não é?

Para quem não cai nesta, a seguinte estratégia é o medo. «A manifestação vai ser violenta», «os perigosos radicais estão a organizar-se», «cuidado que eles são maus», argumentam, usando comentadores e manchetes de jornais. E também há quem acredite. É óbvio que também os há, os profissionais da violência, mas enquanto acharmos que é mais importante lutar contra eles do que contra quem está a destruir o nosso país não vamos muito longe. Basta irem a uma manifestação para identificarem rapidamente onde está o perigo. E afastarem-se dele.

Depois chega a manifestação. E há centenas de milhares na rua, bem representativos dos milhões que estão fartos desta brincadeira. Para quem lá está, sente-se no ar a indignação, a tristeza, a revolta escondida dentro de um povo sereno (até ao dia em que o deixar de ser). Para quem ainda ficou em casa à espera de uma manifestação não política, pacífica, perfeita, que resolvesse todos os problemas do mundo, as imagens trazem algum arrependimento, inveja até, porque há pessoas que estão a lutar por nós. Para esses, ainda há esperança. Juntem-se na próxima.

E, depois, há os outros. Que se calam, que desaparecem milagrosamente nestes dias. Que são beneficiados por esta sociedade tal como ela está e por isso não querem que ela mude. Que se preocupam quando as pessoas conversam na rua, contam as suas terríveis histórias aos microfones, e choram, e gritam e cantam a «Grândola, Vila Morena». Esses, coitados, tiveram um 2 de Março tramado.

Mas não se pense que eles desistem. Há um governo, uma troika, um sistema para defender. Ainda por cima não houve confrontos, por isso não podem vir com a conversa anti-violência. E lá voltam eles à carga, logo pela manhã de domingo. A primeira tentativa até mete dó. Porque o Terreiro do Paço mede isto e não cabem estes e nesta fotografia há um buraco no meio da manifestação. Que tristeza. Como se a indignação dos portugueses se medisse em metros quadrados. Como se os números que nos preocupam não sejam os do desemprego, da pobreza, das falências, dos despedimentos, etc etc. Aí já não gostam de números, não é? Os números são uma seca quando não se acerta uma.

A segunda, mais perigosa, é a fase do rejubilo pela ausência de consequências visíveis. A manifestação não resolveu nada, não surgiram propostas, meu deus, eles nem apresentaram um programa político!!! Como se, ao desfilar pela Avenida da Liberdade no sábado, eu tivesse sido eleita para ocupar um lugar no parlamento, que é onde eles podem efectivamente mudar alguma coisa. Percebam isto: nós saímos à rua porque não aguentamos mais, porque queremos outra vida e porque o nosso exercício da democracia não termina no voto. Isto somos nós a avisar-vos que têm de mudar e dêem-se por gratos por o fazermos de forma pacífica, sem ameaça. Vamos continuar a fazê-lo, mas ninguém pode prometer que será sempre assim.

Ainda há uma terceira estratégia, que ontem me chegou por via de um ex-líder da JSD na televisão. “Os problemas do país resolvem-se a trabalhar, a exportar, a investir”. Isto insulta-me. Revolta-me mesmo. Como se as pessoas que ali tivessem estado não trabalhassem, não quisessem fazer nada na vida além de cantar umas músicas de Zeca Afonso, não fossem suficientemente portuguesas para lutar pela mudança. Estes meninos vivem no seu casulo laranja, rosa ou amarelo e azul e não nos conhecem. Acham que o salário médio de um jovem trabalhador ronda os 1500 euros por mês (juro, disseram-me isto), que um pobre tem sempre “ajudas” a quem recorrer (devem estar a falar da amiga Jonet, não sei) e que um desempregado é uma pessoa que apenas não é empreendedora o suficiente para criar o seu próprio emprego. Eles, que em muitos casos nunca trabalharam além das Jotas, além dos “debates” nas universidades de verão, além das campanhas para eleger primeiro os amigos e depois eles próprios. Oh, porque isso é que resolve tudo e ir para a rua é uma coisa tão de esquerda, que nojo.

Por último, há os amorfos. Que não pensam sequer em ir à manifestação, que não pensam em nada, que não reclamam, não reivindicam, não se queixam. Esses dão-me pena e, se nada os acordou até agora, temo que ficarão de braços cruzados para sempre. Só receio que, na hora do voto, sejam estes que vão lá fazer a cruzinha naquela que lhes parece a alternativa, noutra qualquer figura do bloco central e habitual de interesses, que lhes promete aumentos, menos impostos e uma vida melhor. E eles acreditam, outra vez. E votam, cumprem o seu papel de cidadãos, porque é no voto e não numa manifestação que mudamos isto, não é? Coitados, não percebem sequer que estão do lado deles.

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