Era uma vez um cozido à portuguesa
Era uma vez um cozido à portuguesa. Com boas carnes. Barrosãs, alentejanas ou arouquesas. Nada de cavalo. Com enchidos típicos que tornavam o prato ainda mais apreciado. Tinha qualidade e representava, como grande parte da gastronomia, a própria cultura do país.
O último cozinheiro foi despedido, acusado de desperdício e de deixar a cozinha num caos. As críticas foram tantas, não só ao cozido em si, mas à forma como era preparado, que veio um novo cozinheiro. Com promessas de um fair-play financeiro aplicado à cozinha e que faria do cozido um prato preparado para as exigências dos novos tempos.
Começaram pelo corte de condimentos. Carne de vaca é um luxo e podia perfeitamente ser um dos elementos a dispensar. Afinal, o cozido tem tanta carne, que provavelmente ninguém lhe vai sentir a falta. A orelheira foi vista como um pormenor, que nem era do agrado de todos. Também era facilmente dispensável. Os enchidos são os grandes responsáveis pelo mau colesterol e é preciso zelar pela saúde dos consumidores. O toucinho e as gorduras, então, é quase malévolo entrar na dieta nacional. Ainda houve quem dissesse que eram precisamente esses dois elementos que davam sabor ao prato. Mas a ordem era para cortar.
O cozido, que de cozido já só tinha o nome, continuou a ser reinventado. Reestruturado. Sobravam o frango, a água, o sal, o arroz e as couves. Estas últimas, cozinhadas à parte para não misturar o sabor, passaram a ser servidas como um complemento. Pago à parte. Era preciso rentabilizar o que tinha sobrado.
O que não estava nas contas do novo cozinheiro é que em vez do cozido à portuguesa a que se havia proposto servir, o que saiu para a mesa foi uma canja. Isto com os clientes dos restaurante todos a gritar: «Cozido! Cozido! Cozido! Cozido!»
O novo cozinheiro, reunido com a sua equipa, desabafa que não percebe onde esteve o erro. A receita é basicamente a mesma. Ok, saiu uma canja, mas o que é uma canja se não filosoficamente a base do cozido? Calma! Não vale a pena desesperar. Ainda há margem de manobra. Retire-se o frango. Fica só um caldo de arroz, mas continua a ser uma base, mais simples, do cozido.
Os inspectores gastronómicos, nas tintas se o prato final é cozido ou caldo de arroz, vieram verificar o processo culinário. Pegaram na conta do gás e alertaram que os custos continuam elevados. O cozinheiro, envergonhado, admite que para poupar no gás é preciso mais tempo para deixar cozer o que quer que seja.
O que agora os clientes do restaurante duvidam, e bem, é que mesmo tendo mais tempo, a canja milagrosamente se transforme em cozido. E ainda ficam admirados por se pedir factura em nome do cozinheiro.