O triunfo do islandismo
Quando, em Setembro de 2008, o Lehman Brothers faliu e em dois dias foram retirados 150 mil milhões de dólares de fundos de investimento dos Estados Unidos, o mundo susteve a respiração. Era só o princípio do conhecimento público de um colapso que viria a ter dimensão planetária, já que desde 2007 que a crise do subprime tentava sair das catacumbas do sistema financeiro. Apesar de todas as tentativas feitas para estancar a hemorragia, houve um país que foi deixado a sangrar pelo estado lastimável que os fundos tóxicos deixaram a sua economia, até então considerada como um exemplo de sucesso: a Islândia.
A dívida dos três maiores bancos afectados correspondia, à altura, a dez vezes o PIB islandês. A verdadeira dimensão da desgraça deu-se ali. Implodiu a máquina que movia a vida dos islandeses, desde sempre concentrados em actividades do sector primário, mas que com o boom da banca de investimento se tornou numa plataforma de yuppies do século XXI. O desespero foi tal que começaram a incendiar os próprios Range Rovers topo de gama só para poderem ser indemnizados pelas companhias de seguro, já que nem o vizinho lhes podia comprar o carro. E quando falo em vizinho, na Islândia, refiro-me ao país inteiro. Naquela ilha, a ordem alfabética da lista telefónica é pelo nome próprio e não pelos apelidos familiares.
O "dono" do MacDonald's teve de encerrar o seu franchise porque ficava mais barato oferecer whisky aos clientes nos menus do que as simples batatas fritas, que tinha de mandar vir da Alemanha a preços, de repente, de verdadeiros produtos de luxo.
Neste cenário, havia quem duvidasse seriamente do futuro económico e financeiro do país. O FMI entrou com pinças no território - muitas destas histórias foram mesmo contadas pelo enviado especial daquela organização à Islândia - e começou a fazer bem as contas. Com uma desgraça daquelas, o resgate duraria largas décadas.
Naquele ambiente infernal, não foi difícil manterem a cabeça fria pelas baixas temperaturas a que sempre estiveram habituados. Já que estavam entregues à própria sorte, decidiram começar do zero. Perguntar a quem iria sofrer a austeridade, o que devia ser feito. E, em referendo, fizeram uma escolha: tratar primeiro do próprio resgate e só depois o dos bancos. Qual risco epidémico, qual quê. Por Thor, partiram para a blasfémia financeira. Ou como escreveu Halldór Laxness no seu Gente Independente: «Não se deixar eternamente escravizar pelo mesmo ladrão».
O problema é que no meio do turbilhão da banca estavam, entre outros, depositantes ingleses e holandeses que nunca estiveram preocupados com a verdadeira origem dos lucros que geravam os traders islandeses. Podia até ser dinheiro ganho no jogo do bicho como no tráfico de órgãos humanos. As long as the cash still flows...
A notícia de ontem marcou, de alguma forma, a agenda financeira mundial. Como não podia deixar de ser. E se mais notoriedade não teve foi porque, provavelmente, não interessa que a decisão da EFTA seja divulgada, não vá outros países decidirem copiar os maus hábitos islandeses, que apenas beneficiam a própria população em primeiro lugar.
Mas o triunfo do islandismo não se deu, apenas, no plano financeiro. Os islandeses decidiram criar uma nova Constituição. De base popular. Pelas palavras da parlamentar islandesa Birgitta Jónsdóttir, percebe-se o alcance do novo texto: «Acredito que as nossas democracias foram sequestradas por burocratas. Não quero que a nossa nova Constituição seja contagiada pela linguagem deles. O tempo deles acabou e não podem fazer nada para o impedir». Democracia directa. Um palavrão que para muita gente pode custar a entrar nos ouvidos.
Pode especular-se a propósito da singularidade do caso islandês. Que não se consegue replicar em mais nenhum outro lado do mundo. É verdade. O que aconteceu na Islândia foi incomparável. Mas há uma lição do islandismo que se pode tirar e que é aplicável a todo Mundo: é que por mais que nos mostrem e provem (mesmo com números e cálculos matemáticos complexos que só a Goldman Sachs e a JP Morgan conseguem explicar) há apenas uma inevitabilidade conhecida pelo Homem: a morte.