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"I saw the best minds of my generation destroyed by madness..."
Allen Ginsberg
Sessenta anos depois deste poema também assisto à destruição da minha geração pela loucura, mas agora é a loucura da austeridade, que agravou e prolongou uma crise nascida da desregulação financeira. Como resultado um em cada três portugueses entre os 15 e os 24 anos não têm emprego, apesar do êxodo verificado - estima-se que apenas em 2013 terão emigrado mais de 100 mil portugueses. A este cenário acresce os desempregados acima dos 45 anos, que aguardam, sem grandes alternativas (em 2014 quase 70% dos desempregados não recebiam subsídio), que seja alcançada a sua idade de reforma.
Perante este cenário ainda há quem considere que o desemprego é uma opção, um capricho, resultado da falta de "esforço e flexibilidade". O importante é ir à luta. São assim estes seguidores da meritocracia, crentes num mundo justo, ao serviço da sua vontade e imune a factores exógenos e incontroláveis; também conhecido como umbiguistas. Mas como os percebo. É demasiado assustador ter consciência da própria fragilidade; é demasiado humilde atribuir à sorte parte do nosso êxito - o refúgio na mentira é o caminho mais simples para alcançar a tranquilidade.
As eleições autonómicas em Espanha vieram confirmar a mudança que vinha acontecendo nos últimos anos. A emergência de movimentos de cidadãos e de novos partidos e movimentos, à direita e à esquerda, culmina na implosão do bipartidarismo que tem sido regra desde o fim da ditadura. O PP venceu em nove das 13 regiões autónomas, mas perdeu todas as maiorias absolutas que detinha. Em Madrid ganhou, mas fica dependente de uma eventual coligação entre o Ahora Madrid (movimento que integra o Podemos e cidadãos de outros partidos de esquerda, como o Equo, equivalente ao LIVRE, tendo recebido o apoio também do partido comunista de Madrid e da Izquierda Unida nacional) e o PSOE. E em Barcelona, ganhou o Barcelona en Comú, outro movimento que integra o Podemos e também o Equo, derrotando o CiU, de direita. Agora precisa de apoio para obter maioria, e o partido socialista da Catalunha será o parceiro mais provável. Somando tudo, o PP perde onze pontos percentuais em relação às últimas eleições autonómicas e o PSOE dois pontos. Nas comunidades onde não conseguiu maioria, o PP corre ainda o risco de ver o Podemos aliar-se ao PSOE para formar Governo.
Para além do fim do bipartidarismo, a principal lição que podemos retirar das eleições de ontem foi o esforço realizado por toda a esquerda (incluindo o Podemos) para conquistar o poder à direita, representada pelo PP mas também pelo movimento Cidadãos. Os diversos partidos à esquerda do PSOE, incluindo o partido comunista, deixaram de parte divergências e juntaram-se em diversos municípios e regiões, assumindo que é mais importante derrotar as políticas de direita do que manter-se entricheirado nas diferenças. O esforço provavelmente estender-se-á ao período pós eleições, tendo vários destes movimentos já admitido negociações com o PSOE para a formação de maiorias.
Não há trincheiras que não possam servir de rampa para outros voos. A esquerda espanhola mostra um caminho. É verdade que falamos apenas de eleições autárquicas, mas de qualquer modo é difícil não comparar esta vontade de abertura e de convergência da esquerda em Espanha (até o partido anti-sistema Podemos construiu pontes e forjou alianças para chegar ao poder) à desunião e entricheiramento da nossa esquerda. Blindados na sua pureza ideológica, PCP e BE continuam a queimar possibilidades. Isto é um erro táctico, mas também estratégico. Táctico porque a soma de toda a esquerda é bastante superior aos votos da direita. Vivemos num país onde, de acordo com as sondagens, cerca de 65% dos eleitores votam à esquerda. No entanto, é a direita que governa. E é aí que reside o erro estratégico. Os valores da revolução têm sido sistematicamente destruídos pelos sucessivos governos à direita porque a esquerda nunca soube aproveitar a maioria sociológica de esquerda do país. Entretidos em jogos florais, os partidos de esquerda foram vendo o Estado Social sendo lentamente desmantelado, contra a vontade da maioria dos portugueses. Tem sido uma derrota que arde em fogo lento, tecida ao mesmo ritmo com que vão sendo transferidos recursos do factor trabalho para o factor capital e a desigualdade vai aumentando, invertendo a marcha do progresso prometido pela revolução dos cravos. Ainda há tempo? Há sempre, mas é uma agonia ver como, apesar do brutal ataque revanchista da direita aos valores de Abril, a esquerda se mantém rigidamente fiel aos seus princípios e à sua pureza, recusando discutir alianças e convergências. Espanha pode ser um exemplo. Se não o seguir, a esquerda portuguesa irá continuar a intercalar derrotas e ténues vitórias durante muitos anos. Péssimas notícias para o país e para os portugueses.
Adenda: este post do Filipe Santos Henriques explica em pormenor e rigorosamente o que aconteceu ontem.
Decorrem atualmente as primeiras primárias para a escolha de candidatos a deputados da história da política portuguesa. Pela primeira vez, um partido decidiu abrir aos seus membros e apoiantes (e, neste caso especial, subscritores da candidatura conjunta com movimentos civis) o processo de decisão dos homens e mulheres que desejam que, no Outono deste ano, venham a ser os seus representantes eleitos na câmara parlamentar nacional da nossa democracia. Pela primeira vez, num ato democrático que celebra o 40º aniversário das primeiras eleições legislativas em tempos de Abril, há uma força partidária que deseja ir mais longe, tornar mais claro, aberto, transparente e acessível a escolha dos representantes populares, dos representantes do povo da República.
Caso possa e entenda, candidate-se, seja proponente dos candidatos ou registe-se para poder votar.
E, claro está, não podia deixar de destacar que este estaminé se encontra muito bem representado no leque de candidatos pelo Carlos e pelo Sérgio. No terceiro fim-de-semana de Junho irão a votos, para poder ajudar a determinar os votos de um outro fim-de-semana, algures entre Setembro e Outubro.
Pela primeira vez, existem primárias abertas para deputados em Portugal, tanto na capacidade eleitoral ativa como na capacidade eleitoral passiva, onde todos os que comungam dos princípios daquela organização política são chamados a participar.
Que seja a primeira de muitas, que seja exemplo para muitos.
Foi ontem votado e rejeitado na generalidade o Projeto de Lei 880/XII/4.ª, da autoria de deputados da bancada do Bloco de Esquerda, que pretenderia legalizar o cultivo de canábis para consumo pessoal e criaria o enquadramento legal para os clubes sociais de canábis. O projeto já tinha estado da agenda de votações do plenário da Assembleia da República a 24 de Abril, mas nessa mesma sessão aprovou-se por unanimidade um requerimento que baixou o projeto para discussão na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdade e Garantias sem votação. Foi ainda mais tarde transferido, a pedido do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda, para a Comissão de Saúde, onde os deputados da PSD e CDS-PP aprovaram a não realização da reapreciação na generalidade do diploma, enviando-o assim de volta para o plenário (os deputados com assento na comissão do PS, PCP e BE votaram contra e o deputado do PEV faltou à votação).
Estavam presentes 201 deputados. O diploma foi rejeitado com 17 votos a favor, 132 contra e 52 abstenções.
Votaram a favor todos os deputados presentes da bancada parlamentar do Bloco de Esquerda, assim como 10 deputados do grupo parlamentar do PS, nomeadamente:
Os restantes deputados da bancada socialista optaram pela abstenção, assim como os dois deputados da bancada d'Os Verdes.
Votaram contra os seguintes deputados:
Da bancada parlamentar do PSD
Da bancada parlamentar do CDS-PP
Da bancada parlamentar do PCP
Faltaram às votações os seguintes deputados:
Da bancada parlamentar do PSD
Da bancada parlamentar do PS
Da bancada parlamentar do CDS-PP
Da bancada parlamentar do BE:
O PS, sabiamente, recuou na questão da TSU das empresas. Falta recuar na redução da TSU dos trabalhadores.
São medidas demasiado arriscadas para a sustentabilidade da Segurança Social, pelo menos sem garantia de receitas certas para a sua compensação.
Só mais um recuo.
Para que serve uma eleição? De acordo com cerca de quarenta por cento dos votantes, para nada. Os que, por uma razão ou por outra, por preguiça ou por militância, por falta de disponibilidade ou por um sentido de cidadania enviesado, escolhem não ir depositar o seu voto em dia de plebiscito. Mas a abstenção não é uma escolha igual às outras, não é como preferir ir à praia em vez de ir ao cinema. Não votar tem um preço. Decisivo, grave, essencial.
Pensemos por exemplo em Cavaco Silva, o presidente da República mais impopular da história da democracia portuguesa. Em 2011, foi eleito com 52.95% dos votos depositados. Mas a abstenção chegou aos 53%. Na prática, Cavaco Silva pode ocupar o mais alto cargo da nação apenas com o voto de 23% dos eleitores. A legitimidade formal da sua eleição é inegável. Mas a verdade é que o formalismo democrático não ilude o facto de que apenas uma minoria escolheu votar Cavaco. Talvez por isso a sua taxa de popularidade, aferida em sondagens, partiu de uma base baixa e foi caindo ao longo de cinco penosos anos. Aos que decidiram não ir votar juntam-se os que foram e não votaram nele. Os 77% de eleitores que não se reviam em Cavaco têm assim vindo a sentir na pele o peso de um presidente que nunca esteve à altura do cargo que temporariamente ocupa. Os que escolheram ir e votar noutros candidatos podem sempre dizer que a culpa não é deles. E quem não foi, quem ficou em casa, o que pode dizer em seu favor?
A abstenção não ocupa lugares na Assembleia da República. Não toma decisões, não legisla, não decide. Os votos que não chegam a acontecer transformam-se em votos nos outros partidos e, com o nosso sistema eleitoral (baseado no método de Hondt), os partidos mais votados estão em vantagem. A abstenção favorece apenas os partidos grandes e enfraquece o debate democrático, contribuindo para o pensamento único. A diversidade política e a emergência de alternativas exigem participação e cidadania e dispensam a alienação e a anomia.
Como escreve Platão n’A República: “o preço a pagar pela não participação na política é podermos ser governados pelos piores”. Quem envereda pela via da abstenção (uma negação da escolha democrática) corre esse risco.
(Texto publicado inicialmente no LIVRE/Tempo de Avançar.)
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