Culpa
A menina acabou por ficar no lugar em frente ao meu. Três anos de vida sorridentes num cabelo desmazelado. A noite estava fria mas ela não trazia mais do que um casaco esgaçado de algodão sobre uma t-shirt estampada com um boneco amarelo. Veio a sopa e ela comeu em silêncio, como se nada mais houvesse para fazer quando se tem três anos e o mundo de uma sala de jantar de um restaurante tem tanto por onde passarinhar. Comeu a carne que lhe foi posta à frente a seguir. Eu preocupado pela tenra idade da cachopa e ninguém preocupado em dar-lhe a comida. Ela não procurou quem o fizesse e sorveu garfadas, com a calma de quem sabe que numa sala cheia de gente que sorri pateticamente a uma menina de três anos não há nada mais para fazer. O empregado ébrio deu-lhe então a escolher entre maçã assada, mousse de chocolate e melão. Ela escolheu melão, e eu, como a noite estava fria e certo de que uma menina de três anos não sabe fazer as melhores escolhas para si, pedi uma maçã assada, disposto a ter a caridade de trocar quando chegasse a altura. Comeu o melão que tive a caridade de despedaçar em cubinhos com medo que a menina de três anos se engasgasse na fruta fria e extemporânea.
No fim aconchegou-se no colo de uma senhora a quem chamou avó mas que não lhe é nada, só lhe dedica os dias que a mãe não pode e o pai não quer, o amor que sabe e que a mãe não sabe e o pai sabe lá. Enroscou-se no colo e adormeceu enquanto a avó falava para todos os lados da mesa comprida do jantar cujo tema servido não era o amor nem a caridade nem as meninas de três anos que não sabem que não é ali que devem estar nas noites frias.
Não era uma menina de Andersen nem de Dickens, era daqui de ao pé de mim. Tem um nome que não me disse, um destino que não pagou e uma família que o não é. Avança silenciosa para o futuro e nós sorrimos-lhe pateticamente desejando que não lhe falte nada, mas sobretudo que não nos incomode.