Não há forma de viver sem morrer pelo meio
Ilusão torpe esta a de que morremos aos poucos. Morremos todos os dias um bocadinho, talvez seja mais correcto. Cada pessoa que nos morre é um pouco de nós que se vai com ela, diz o cliché. Não é mentira, é apenas meia-verdade. O outro tanto ocorre quando somos nós que morremos aos outros. E continuamos vivos. Estar na vida de alguém é viver o mundo do outro, emprestado. Inquilinos sem pagar renda. Podemos entrar e sair perante todo e nenhum estrondo. É que há uma conveniência escondida na palavra amor, até no amor que dedicamos aos amigos. E às vezes, antes de eles nos morrerem, morremos nós a eles primeiro. Por vezes acontece calmamente, como a vida que nos morre aos bocadinhos. Embrulhamos em resignação o pacote da estranheza que nos causa o lugar que falta à mesa. Tiramos a mesa para não notarmos o lugar e está feito. Outras vezes não, há escarcéus e gritaria e dedos apontados. E depois há um dia. Há um dia em que pagamos a morte que causamos no outro e a única coisa que temos são os dedos apontados para nós próprios. Agora abre os olhos e percebe que é tarde de mais. Já não há sequer rua para atravessar(*). E não há forma de viver sem morrer pelo meio. Desta vez, “morreste-te”. Game over.
(*)«Things have dropped from me. I have outlived certain desires; I have lost friends, some by death… others through sheer inability to cross the street.» Virginia Woolf - The waves (1931)