125 razões
Em Setembro, o Governo apresentou um programa chamado "famílias primeiro", que consiste num plano de resposta para compensar o impacto do aumento dos preços e a devolver o adicional de receita de impostos cobrada devido à inflação. Uma das medidas é o já famoso apoio extraordinário no valor de 125 € a todos os residentes com rendimento bruto até 2700€ brutos por mês.
A todos não, tal como nas histórias do Asterix, há uma classe de contribuintes excluída desse apoio. Esses contribuintes declararam IRS conjuntamente com o seu cônjuge, pagaram por via disso impostos, mas não auferiram qualquer rendimento.
Esta exclusão atinge sobretudo o universo das mulheres domésticas, que historicamente já são alvo de elevada discriminação. Com a revolução industrial, que separou o "lar" do "local de trabalho", o trabalho doméstico não remunerado, praticado na maior parte por mulheres, foi desconsiderado. Tal conduziu a uma alteração da dinâmica do papel de género: os homens começaram a ser chamados de "ganha-pão", enquanto que as mulheres eram dependentes, tornando-se, por via disso, mais vulneráveis para serem dominadas e exploradas por aqueles.
No entanto, como refere Elizabeth Anderson, os cuidadores dependentes não remunerados contribuem para a economia de, pelo menos, três formas. Em primeiro lugar, a maioria exerce funções domésticas (limpezas, cozinha, etc), que, se não produzidos, teriam de ser contratadas a terceiros. Em segundo lugar, ajudam a criar os futuros trabalhadores e a reabilitar os doentes para que possam regressar ao trabalho. Em terceiro lugar, em assumir estas obrigações libertam os outros membros da família dessas responsabilidades e consequentemente permitem que estes participem ativamente no mercado de trabalho.
Na verdade, o valor anual do trabalho não pago de cuidado e doméstico em Portugal poderá representar entre 40 mil milhões e 78 mil milhões de euros (dependendo da metodologia utilizada). Assim, a sua exclusão do programa de apoio do governo confunde economia com o sector do mercado e aprofunda a discriminação sobre esta classe de cidadãos.
Acresce que existe ainda uma outra manifesta injustiça. Uma vez que o critério de elegibilidade do apoio é o rendimento individual e não o do agregado, mesmo em casos de tributação conjunta, os agregados familiares com um membro sem rendimentos vão ter apoios inferiores a agregados familiares com rendimentos superiores no seu conjunto.
E existir esta exclusão relativamente a um programa chamado "famílias primeiro" é apenas aquele último insulto.