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365 forte

Sem antídoto conhecido.

Sem antídoto conhecido.

24
Abr23

A verdade das "verdades"

CRG

Há uma contradição nos alegados políticos que dizem “as verdades”. Estes são os que mais dizem mentiras. Mesmo os seus apoiantes sabem que eles mentem mas acrescentam em sua defesa que todos o fazem. A questão então que os preocupa não é a verdade, mas as “verdades”. 

 

Mas o que são “verdades”? Poderemos definir como crenças estigmatizantes sobre minorias ou acusações infundadas sobre terceiros, nomeadamente sobre outros grupos sociais, que alegadamente são partilhadas num ambiente privado, isentas de qualquer influência externa que as obriguem a conformar com normas de desejabilidade social. Estes políticos, porém, têm a “coragem” de as expressar publicamente.

 

Neste sentido, há quem considere que todos que apoiam este discurso partilham estes preconceitos, mas que suprimiram este sentimento com receio de serem alvo de crítica. Com efeito, quem faz estudos de opinião sabe que as opiniões que as pessoas expressam são afectadas pelo entrevistador, isto é, em questões sensíveis raciais, os inquiridos expressam pontos de vista mais moderados e conciliatórios quando acreditam que estão falando com alguém de outra raça. Assim, há quem considere que nestas situações há um esconder da verdadeira opinião do inquirido.

 

No entanto, “Lynn Sanders argumenta que essa visão atomizada e individualista contradiz o ideal democrático de formação da opinião pública, o qual sustenta que as opiniões dignas da descrição "pública" devem surgir numa democracia a partir das discussões realizadas em conjunto por cidadãos diversos. Nessa perspectiva, a moderação da opinião que surge, longe de refletir uma distorção artificial da "verdadeira" opinião das pessoas, representa uma opinião mais autenticamente pública e democrática, refletindo adequadamente a influência de diversos pontos de vista nas opiniões dos indivíduos.*

 

Em geral, quanto mais diversificadas forem as redes de discussões políticas de um indivíduo, mais bem informado ele estará sobre os fundamentos de suas próprias opiniões e as dos outros, e mais tolerante ele será em relação a visões políticas opostas. E refletem um processo de pensamento mais informado e consciente, à luz de uma pressão democraticamente legítima para formar opiniões que possam ser justificadas perante um público diverso”*.

 

Assim, a pressão pública para um discurso tolerante não pode ser visto como uma limitação à verdade e à liberdade, mas como pressuposto necessário à própria democracia. A sua aceitação e normalização legitimam e multiplicam o seu uso na esfera pública, distorcendo e corroendo a formação da opinião pública. Deste modo, “as verdades” são, por si só, anti-democráticas, mesmo que quem as use não queira expressamente mudar o regime político. 

 

*Retirado daqui.

02
Mar23

O debate já Era

CRG

O estado da democracia vê-se pela qualidade do debate. A questão da crise da habitação poderia ser um ponto de partida importante para uma discussão fundamental sobre o futuro do país. No entanto, o debate ficou na sua maior parte limitado à questão do arrendamento de casas vazias, que terá na prática pouca ou nenhuma relevância.

 

Com efeito, a crise da habitação é reflexo de problemas mais abrangentes e profundos: elevados níveis de desigualdade; baixos salários; uma economia demasiado dependente do turismo (as cidades ficam ocupadas por alojamentos locais); centralismo e desertificação do interior; precariedade laboral, sobretudo nos mais jovens; justiça lenta; efeitos da livre circulação de capitais numa economia como a portuguesa. 

 

Deste modo, não é possível discutir a habitação sem efetuar uma análise das políticas que nos levaram a este ponto, nomeadamente os efeitos da austeridade e da falta de investimento público. 

 

A importância desta discussão não significa porém que se deva ignorar a apresentação de medidas concretas ou que a crise de habitação não tenha as suas razões especificas. Com efeito, durante anos o Estado teve uma visão meramente assistencialista para a resolução de um bem escasso e fundamental como a habitação: dando primazia ao mercado e intervindo apenas na habitação social (que é uma visão que certa direita tem para outros problemas sociais), sendo que para responder às suas próprias lacunas onerou certos proprietários (ainda não foi levantada a proibição da entrega judicial de casa morada de família). 

 

Acresce que nesta discussão também é importante que exista a consciência que a economia (contratos de arrendamento, hipotecas, direito de propriedade) é uma construção política assente numa ideia de justiça. 

 

Por outro lado, os efeitos desta crise transcendem a simples necessidade de habitação. A existência de espaços comuns (escolas, parques, bibliotecas, associações recreativas) que reúnam pessoas de diferentes origens, etnias e classes são essenciais para que se cultive solidariedade e um sentido de comunidade. Por sua vez, sem esta solidariedade e sentido de comunidade não existe uma cidadania forte, colocando em risco a própria democracia. Assim, aceitar que as grandes cidades sejam reservadas apenas aos mais afluentes coloca em causa a própria democracia. Será que não devemos pugnar por opões políticas que fomentem a cidadania, em vez de afirmar candidamente que os mais pobres não podem querer habitar em certas zonas.

 

Assim, é necessário pensar que Estado e que justiça social queremos a ter. A que tipo de sociedade aspiramos.

02
Nov22

125 razões

CRG

Em Setembro, o Governo apresentou um programa chamado "famílias primeiro", que consiste num plano de resposta para compensar o impacto do aumento dos preços e a devolver o adicional de receita de impostos cobrada devido à inflação. Uma das medidas é o já famoso apoio extraordinário no valor de 125 € a todos os residentes com rendimento bruto até 2700€ brutos por mês.

 

A todos não, tal como nas histórias do Asterix, há uma classe de contribuintes excluída desse apoio. Esses contribuintes declararam IRS conjuntamente com o seu cônjuge, pagaram por via disso impostos, mas não auferiram qualquer rendimento.

 

Esta exclusão atinge sobretudo o universo das mulheres domésticas, que historicamente já são alvo de elevada discriminação. Com a revolução industrial, que separou o "lar" do "local de trabalho", o trabalho doméstico não remunerado, praticado na maior parte por mulheres, foi desconsiderado. Tal conduziu a uma alteração da dinâmica do  papel de género: os homens começaram a ser chamados de "ganha-pão", enquanto que as mulheres eram dependentes, tornando-se, por via disso, mais vulneráveis para serem dominadas e exploradas por aqueles.

 

No entanto, como refere Elizabeth Anderson, os cuidadores dependentes não remunerados contribuem para a economia de, pelo menos, três formas. Em primeiro lugar, a maioria exerce funções domésticas (limpezas, cozinha, etc), que, se não produzidos, teriam de ser contratadas a terceiros. Em segundo lugar, ajudam a criar os futuros trabalhadores e a reabilitar os doentes para que possam regressar ao trabalho. Em terceiro lugar, em assumir estas obrigações libertam os outros membros da família dessas responsabilidades e consequentemente permitem que estes participem ativamente no mercado de trabalho.

 

Na verdade, o valor anual do trabalho não pago de cuidado e doméstico em Portugal poderá representar entre 40 mil milhões e 78 mil milhões de euros (dependendo da metodologia utilizada). Assim, a sua exclusão do programa de apoio do governo confunde economia com o sector do mercado e aprofunda a discriminação sobre esta classe de cidadãos.

 

Acresce que existe ainda uma outra manifesta injustiça. Uma vez que o critério de elegibilidade do apoio é o rendimento individual e não o do agregado, mesmo em casos de tributação conjunta, os agregados familiares com um membro sem rendimentos vão ter apoios inferiores a agregados familiares com rendimentos superiores no seu conjunto.

 

E existir esta exclusão relativamente a um programa chamado "famílias primeiro" é apenas aquele último insulto.

31
Jan22

O grande resultado do Livre

Pedro Figueiredo

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Foto: André Kosters/EPA

Já tinham ficado bem visíveis as difíceis condições em que o Livre iria tentar a reeleição para este novo ciclo legislativo. Chegou-se mesmo a vaticinar que, depois do episódio de divórcio com a sua única deputada, as probabilidades de voltarem a merecer a confiança do eleitorado tinham-se reduzido substancialmente.

Historicamente, a entrada de novas forças políticas no Parlamento tinha sido particularmente difícil de conseguir. No entanto, o paradigma alterou-se radicalmente em 2019 quando, pela primeira vez, três novos partidos garantiram a sua estreia parlamentar, precisamente no mesmo momento em que o PAN passou de deputado único para um grupo parlamentar de quatro tribunos.

A eleição de Joacine Katar Moreira já tinha deitado por terra a teoria de o Livre ser uma espécie de partido unipessoal, mas a eleição de Rui Tavares, confirmou a ideia de haver realmente espaço na sociedade portuguesa para uma esquerda verde e progressista. Esta vitória, analisados agora com os resultados conhecidos, torna-se ainda mais relevante pelo facto de o Partido Socialista (PS) ter conquistado uma maioria absoluta, o que na verdade foi o grande obstáculo à conquista de um grupo parlamentar do Livre. Isabel Mendes Lopes (2.ª por Lisboa); Jorge Pinto e Paulo Muacho (cabeças de lista pelo Porto e Setúbal, respectivamente) estavam e continuam a estar mais do que preparados para o combate parlamentar, mas viram, infelizmente, as suas entradas na casa da democracia adiadas por mais uma legislatura. Vítimas precisamente do discurso ecoado a partir do Largo do Rato pelo voto útil – ou maioria estável primeiro, absoluta depois, e diálogo numa terceira e derradeira fase à porta do acto eleitoral. Isto mesmo disse-o Rui Tavares, na manhã do day after, em declarações à rádio Observador, ao lembrar as inúmeras mensagens que recebeu de eleitores que se soubessem que haveria a possibilidade de ser alcançada a maioria absoluta teriam apostado no reforço do Livre.

Lembrando Mark Twain, as notícias da morte das papoilas foram manifestamente exageradas. Garantir representação parlamentar numas eleições em que desapareceram dois históricos partidos da democracia portuguesa – CDS e PEV –, e com o PAN salvo pelo gongo, assegurando o mandato solitário de Inês Sousa Real já em photo finish, é indubitavelmente um grande resultado eleitoral.

Há, no entanto, um twist, ou melhor, um outro lado desta moeda de maioria absoluta que pode ser favorável ao Livre. Foi uma maldição porque interferiu directamente na eleição de mais mandatos, mas dá uma maior margem de manobra a Rui Tavares para defender as propostas do partido no hemiciclo. E foram várias aquelas que foram apresentadas durante a campanha eleitoral, a esmagadora maioria das mais discutidas verdadeiramente urgentes para a melhoria das condições de vida dos mais carenciados, como por exemplo o Super Bónus Climático ou o Rendimento Básico Incondicional.

O Livre pode muito bem ser, mesmo neste contexto de maioria absoluta, uma voz de consciência do Governo. A avaliar pelo bom discurso de vitória de António Costa, este resultado “não significa poder absoluto” e garante diálogo com todas as forças políticas. Todas, não. A excepção é conhecida e apesar do crescimento significativo da representação em causa, o efeito prático é nulo. Vem aí uma nova e interessantíssima legislatura.

 

06
Out21

Meritocracia em tempos de pandemia

CRG

Durante anos, foi-nos dito que não se devia desperdiçar uma crise, que havia lições a retirar das dificuldades. Assim, foi com surpresa — ou talvez não — que foi esquecida, no mínimo pouco debatida, a lição principal que se devia retirar destes anos de pandemia: a economia como um sistema cooperativo de produção conjunta. 

 

Ao contrário do que nos é vendido diariamente, a riqueza não é formada por um punhado de empresários geniais, que por via do seu esforço conseguem produzir tudo sozinhos. Nestes tempos de pandemia foi demonstrado, se dúvidas ainda houvesse, que tudo é produzido por todos trabalhando em conjunto; que todos os trabalhadores se encontram interligados numa rede de produção e de consumo.

 

A capacidade de produção de cada trabalhador está, assim, dependente da produção de terceiros, quer seja comida, limpeza, de cuidados de saúde, escola, cuidados domésticos, etc. Durante a pandemia apenas foi possível ficar em isolamento porque outros mantiveram em funcionamento a produção de comida, a recolha do lixo, e para que estes pudessem trabalhar algumas escolas tiveram que se manter abertas para que os seus filhos não ficassem sozinhos. 

 

Deste modo, todos beneficiam da diversidade de talentos e dos papeis numa sociedade, em que ninguém tem uma contribuição muito acima dos demais. Daqui decorre inevitavelmente que deve existir reciprocidade entre todos os trabalhadores e uma justa divisão do lucro. 

 

Esta visão da economia deve ser traduzida nas seguintes formas:

Em primeiro lugar, qualquer salário deverá permitir que qualquer trabalhador a tempo inteiro consiga provir para si as necessidades básicas para viver. Não existem trabalhos menores, são todos úteis para o todo.

 

Em segundo lugar, a redução das desigualdades salariais. Com efeito, "em 2019, somando a remuneração fixa e variável, os CEO em Portugal passaram a ganhar quase 30 vezes mais do que a média do salário dos trabalhadores. Em 2018, ganhavam 25 vezes mais. Em média, cada CEO ganhou 916 mil euros em 2019, um aumento de 20% face ao exercício anterior, enquanto o salário médio dos trabalhadores, ficou-se pelos 29 mil euros, subindo 1,5% em termos homólogos. Esta diferença não é justificável nem aceitável". 

 

Por último, um sistema fiscal justo para todos. Conforme referido supra a sociedade é um sistema de cooperação que produz conjuntamente a riqueza total da economia. Daqui decorre que a sociedade moderna tem uma profunda dependência mútua. Desta forma, todos devem contribuir para a sociedade de acordo com os meios de cada um. 

04
Set21

Chegam pela sombra

CRG

Pat Riley, um dos mais famosos treinadores e dirigentes da NBA, cunhou no seu livro “Showtime” o conceito de “disease of more”: após alcançado o campeonato os jogadores nunca ficam satisfeitos, querem sempre mais, mesmo que seja contra a colectivo, concluindo que o sucesso é normalmente o primeiro passo para o desastre. 

 

A direita portuguesa parece ter chegado a este ponto. Todos os seus grandes objectivos políticos foram alcançados. O impulso final ocorreu com a troika, cuja chegada foi aplaudida por todos à direita - basta recordar o entusiasmo de Eduardo Catroga na assinatura do memorando ou como foi apregoado que iam para além da troika e que esse seria sempre o seu programa.

 

Neste momento, não existe praticamente nada para privatizar. E para o que falta (Caixa Geral de Depósitos, S. A., RTP, Seg. Social, Educação e Saúde) não existe suficiente apoio popular — a TAP é uma exceção em todos os aspetos. A percentagem de funcionários públicos na população empregada em Portugal é inferior à média da União Europeia. O equilíbrio de poder entre capital e trabalho pende claramente para o capital, desde os direitos laborais passando pela tributação. Apesar da manutenção do SNS, ocorreu um aumento substancial do número de portugueses com seguro de saúde - em fevereiro de 2021 já eram quase 3 milhões, cerca de mais de mais 80% dos que no final de 2015. 

 

Portugal pode não ser ainda o sonho liberal de muitos, mas está ainda mais longe do socialismo socialismo estatizante que muitos apregoam. No fundo, Portugal é uma sociedade construída à imagem do centro direita.

 

Face ao sucesso alcançado existe um claro vazio programático. E, por força das regras orçamentais europeias, não pode, neste momento, anunciar uma descida de impostos, sem ser acompanhada de uma redução drástica dos apoios sociais, que seria igualmente impopular. 

 

Nesta encruzilhada a direita aparentemente minoritária, seguindo uma visão verdadeiramente conservadora, procura manter o que há, fazendo pequenos incrementos, evitando a natural entropia do sistema.

 

No entanto, a maioria sofre do “disease of more”. Esta direita pretende continuar a caminhar, alterando ainda mais o centro político de forma a adaptar a este contexto, puxando a janela de Overton para ainda mais à direita.

 

Acontece que a maior parte dessas medidas não têm apoio popular suficiente para ganhar eleições. E aqui surge a ideia de agregar todo o espectro da direita para alcançar o poder. Para isso estão dispostos a fazer explodir o centro. 

 

Assim, assiste-se a uma cada vez maior polarização política:  a um tom crispado e acusatório; à utilização de um discurso anti-sistema contra um sistema totalitário imaginário, apelidando todo o espectro político à sua esquerda de radicalismo enquanto, ao mesmo tempo, normalizam uma extrema direita em ascensão. 

22
Jul21

Qual é o ponto da liberdade?

CRG

Em tempos recentes, a “liberdade” tem sido abusada: por um lado, reivindicado por uma certa direita e por outro lado, curiosamente ou não, por agências de marketing para vender todo o tipo de produtos. Em ambas os casos a liberdade é vista apenas na perspectiva individual. No primeiro caso esta é alcançada através de menos impostos, numa espécie de “trickle down” da liberdade — quanto mais livre eu for, mais liberdade sobra para os outros. No segundo caso através da aquisição do mais recente telemóvel ou de uma bebida gaseificada. 

 

No entanto, a liberdade só existe se esta for universal. Apenas se alcança a liberdade quando todos forem livres. Não é um objectivo individual, mas colectivo. Os cidadãos da Grécia antiga podiam ser livres, mas não havia liberdade.  Os homens brancos podiam ser livres na África do Sul ou nos EUA nos anos 50, mas não havia liberdade. Por ser universal esta não pode estar dependente de qualquer característica individual (cor da pele, sexo ou capacidade financeira). 

 

Deste modo, não há pior forma para definir liberdade do que aquela frase batida que “a minha liberdade acaba quando começa a do outro”*. É precisamente o contrário: a minha liberdade só começa quando o outro também é livre, quando são garantidas as condições de liberdade para todos. O objectivo principal na construção de um Estado democrático é a garantia de liberdade. Ora, se o Estado democrático é na sua essência cidadãos agindo de forma colectiva, a principal obrigação de cada cidadão é, desta forma, garantir para cada concidadão as condições de liberdade.

 

Por sua vez, se a liberdade é uma busca universal, qual a melhor forma de a garantir? Garantindo, como defende Elizabeth S. Anderson, que todos os cidadãos são considerados como iguais. Parafraseando a referida autora: iguais não são objectos de violência arbitrária ou coerção física; Iguais não são marginalizados por outros e consequentemente são livres de participar na política e nas principais instituições da sociedade; Iguais não são dominados, nem vivem à mercê dos desejos dos outros; Iguais não são explorados, pelo que recebem o valor justo pelo seu trabalho; Iguais não são sujeitos a imperialismo cultural, podem praticar a sua própria cultura, desde que respeitando os restantes. Em suma são livres de opressão, de participar e usufruir os bens da sociedade e autonomia democrática.  

 

Esta liberdade é apenas alcançável através de uma sociedade igualitária, que garanta a todos as capacidades necessárias para evitar ou escapar relações sociais opressivas e para funcionar como iguais num estado democrático. 

 

* Esta visão negativa negligencia a importância de ter meios para se fazer o que se quer. 

15
Jun21

Está tudo na net!

CRG

Eu não li o livro Os factos escondidos da História de Portugal – o que os compêndios não nos dizem (Lisboa, Oficina do Livro, 2021) da autoria do José Gomes Ferreira. Nem tenho conhecimentos de história para comentar os "factos" históricos revelados no livro*, para isso sugiro os post de Paulo Jorge de Sousa Pinto e o podcast "Falando de História".

 

No entanto, ouvi as intervenções do JGF nas diversas iniciativas de promoção do livro. Ele resumidamente considera que não se deve confiar nos historiadores, que vivem numa conspiração aliada ao poder político para evitar que o povo português conheça a verdadeira história de Portugal, sendo que esta verdadeira história se encontra na internet ao alcance de um click a qualquer um com bom senso.

 

No fundo, JGF é o homem modelo do efeito Dunning-Kruger, que usa a internet para alimentar o seu viés da confirmação (a tendência de lembrar, interpretar ou pesquisar por informações de maneira a confirmar crenças ou hipóteses iniciais). Este tipo de mecanismo intelectual é bastante comum e pode ser encontrado nos movimentos anti-vacinação, negacionistas das alterações climáticas, negacionistas da covid-19, etc. E os seus efeitos são bastantes perigosos. 

 

Esta situação seria um pouco menos grave, se fosse apenas uma estratégia do autor para vender uns livros. No entanto, as declarações de  JGF sobre a cor do planeta Marte (novamente preconceito contra especialistas, teoria de conspiração, elogios aos amadores, e recurso a páginas da internet) dissipam todas as dúvidas e demonstram que aquele mecanismo se generalizou a todo o seu processo mental. E isso já é preocupante; não só pela posição que ocupa como um dos jornalistas mais importantes no espaço mediático português, mas sobretudo pela capacidade que tem de influenciar a opinião pública — por alguma razão, JFG refere que o livro não é de história, mas de política. 

 

* Sempre se diga, porém, que é no mínimo estranho que um livro que pretende desvendar factos escondidos tenha como principal fonte a internet, mas adiante.

25
Jan21

Feiticeiro do Oz

CRG

"Keep cool, but care"

Thomas Pynchon, "V"

 

As noites eleitorais têm uma característica peculiar: o tempo é passado a serem feitas extrapolações, dinâmicas e narrativas com pouca ou nenhuma relação com os resultados em si. 

 

Na verdade, os resultados das eleições correspondem ao sentido de voto naquele momento e naquele contexto, não mais do que isso.

O contexto nas últimas eleições presidenciais é simples 1) existia um candidato que era favorito, o que propicia o voto protesto inconsequente; 2) o principal partido do centro-esquerda apoiou implicitamente Marcelo, o que levou alguns votantes da direita a procurar alternativas.

 

Ontem, Marcelo Rebelo de Sousa obteve uma maioria confortável. Pela primeira vez na história um candidato presidencial ganhou em todos os concelhos do país. Assim, a principal noticia da noite deveria ser a vitória expressiva do candidato do centro direita, com boas relações com o governo em funções do centro esquerda; e como esta vitória é  indicativa de que o regime, apesar de tudo, está sólido. 

 

No entanto, a análise focou-se no candidato que ficou em terceiro lugar com 12% dos votos, num contexto que lhe era vantajoso. Isto não quer dizer que se deva menosprezar o resultado de um candidato de extrema-direita, mas sim relativizar a sua importância.

 

Ao amplificar os resultados e relevo de um candidato extremista, estaremos - em especial, os outros partidos políticos (sobretudo o PSD do Rui Rio) e os OCS - a criar a imagem de uma figura poderosa, que marca a política e a agenda mediática em Portugal. Enquanto que na realidade, por detrás da cortina, continua a ser um homem pequenino sem poder, "cheio de som e fúria e vazio de significado". É bom que se mantenha assim.

08
Nov20

Chega de faustos

CRG

O percurso da ascensão da extrema direita em Portugal é como ver um filme depois de já se ter lido o livro. 

 

Após a celebração do infame acordo nos Açores, repetiram-se os mesmos argumentos e episódios que tinham ocorrido noutros países em situações semelhantes:

- Factos alternativos

O PSD repetiu por diversas vezes que não havia qualquer tipo de acordo com a extrema direita. 

- Projecção

O PSD não só negou a existência de qualquer acordo com a extrema direita (que finalmente admitiu existir), como acusou de mentiroso quem aludia à existência do referido acordo.

- Os media como inimigos

Na intervenção no fórum da TSF, o deputado do PSD repetidamente referiu-se aos media como "vocês" e acusou-os de empolarem a importância deste assunto (acordo com a extrema direita) em vez de falarem de assuntos mais importantes. 

- Falsas equivalências

O acordo com a extrema-direita que promove a castração química é equivalente ao acordo que o PS celebrou com a extrema-esquerda que promove as 35h semanais para a função pública.

- Demonizar os adversários políticos

Miguel Albuquerque justificou o acordo alegando que o principal inimigo do PSD é o PS. Nuno Morais Sarmento foi ainda mais longe e defendeu que o BE nega os princípios básicos da democracia. 

 

Como defendem Hugo Mercier e Dan Sperber, da Universidade Harvard: “A razão tem duas funções: produzir motivos para justificar a si mesmo e gerar argumentos para convencer os demais”. Ora, perante a ausência de argumentos válidos que permitem legitimar o acordo, apenas resta a utilização destas práticas, que, mais cedo ou mais tarde, destroem a democracia.

 

Assim, os partidos da direita dita democrática reconhecem que chegados a uma encruzilhada fazem acordos com a extrema-direita para alcançar o poder - objectivo que para eles se sobrepõe à própria democracia. É assim tão simples. 

«As circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.»
- Ortega y Gasset

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