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365 forte

Sem antídoto conhecido.

Sem antídoto conhecido.

30
Jun18

CDS-Travão

David Crisóstomo

Os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projectos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento.

n.º 2 do artigo 167º da Constituição da República Portuguesa

 

 

"Convém até lembrar ao Sr. Deputado Jorge Machado que, como o Sr. Deputado sabe, pois é o Sr. Deputado que gosta sempre de citar a Constituição—muito mais do que eu—, a Constituição tem no seu artigo 167.º a lei-travão: não é possível, no ano económico em curso, diminuir taxas ou aumentar despesas."
Pedro Mota Soares, 3 de Fevereiro de 2011

 

"Mas queria dizer-lhe que o que surpreende é a forma. Passo a explicar: o Partido Comunista Português, que é, tantas vezes, tão cuidadoso em matérias legais e constitucionais —e só lhe fica bem! —, apresenta um projeto de lei que, manifestamente, não só viola o princípio da separação de poderes, que é inconstitucional, como viola também, se fosse aprovado por mera hipótese académica, a lei-travão e, portanto, viola também a legislação."
Nuno Magalhães, 26 de Junho de 2014

 

"Em primeiro lugar, pergunto como é que o PCP, através do artigo 1.º do projeto de lei que apresenta, diz que revoga o Decreto-Lei n.º 113/2011, de 29 de novembro, que estabelece o acessoàs prestações do Serviço Nacional de Saúde, substituindo-o por três artigos, dizendo o quarto artigo que a lei entrará em vigor cinco dias após a sua publicação.Como é que se substitui —esta é a minha segunda questão —um diploma tão extenso, tão denso e tão complexo como é o Decreto-Lei n.º 113/2011 e depois não se tem em atenção a chamada«lei-travão», que diz que não pode haver aumentos de despesa dentro do mesmo ano de execução orçamental?"
Teresa Caeiro, 31 de Janeiro de 2014

 

"Como sabem, a lei-travão impede que isso aconteça e o diploma só entraria em vigor no dia 1 de janeiro de 2019, mas este compromisso que foi reiterado pelo meu partido e pela Sr.ª Presidente do meu partido faz com que se traga esta proposta para debate em sede de Plenário."
João Rebelo, 23 de Novembro 2017

 

"Em primeiro lugar, não é verdade que em relação aos projetos em discussão a questão da expressão orçamental não se coloque, como defende o Bloco de Esquerda —de facto, coloca-se. O cumprimento do projeto do Bloco de Esquerda levaria forçosamente a um aumento da despesa, razão pela qual aqui se aplica a lei-travão. Aliás, o Grupo Parlamentar do PS, como referiu, esta semana, na Comissão de Educação, Ciência e Cultura, é exatamente da mesma opinião, ou seja, de que neste caso se aplica a lei-travão."
Inês Teutónio Pereira, 21 de Fevereiro de 2013

 

"Aliás, a proposta do Bloco nunca poderia ser aprovada, porque não cumpre a chamada «lei travão», não é nesse aspeto constitucional. O PCP é um bocadinho mais subtil, porque omite a questão da entrada em vigor do seu projeto, e poderia discutir-se se isso teria ou não impacto na questão da «lei travão», mas a lei formulário diz-nos que teria de entrar em vigor cinco dias após a sua publicação."
Michael Seufert, 10 de Fevereiro de 2012

 

"Este projecto, que qualifico de alguma insensatez, mas, sobretudo, irrealizável e até ilegal, e já explicarei porquê... Mas não é o facto de ser ilegal que constitui motivo pelo qual votaremos contra. Viola, pura e simplesmente, a lei travão, porquanto prevê despesa que, obviamente, neste caso, não pode ser aumentada, nos termos de uma lei aprovada com os votos de todos os grupos parlamentares."
Nuno Magalhães, 6 de Outubro de 2011

 

"Sr. Presidente, no início da Sessão Legislativa, cada uma das Sras. e cada um dos Srs. Deputados recebeu um pequeno livro amarelo, que é a Constituição da República Portuguesa. Certamente que por lapso, Sr. Presidente, o Deputado Strecht Ribeiro não deve ter recebido esse livro, porque se tivesse lido a Constituição, saberia, primeiro, que o Parlamento não pode diminuir taxas no ano económico em curso — chama-se a isso «lei-travão»"
Pedro Mota Soares, 3 de Fevereiro de 2011

 

 

«"O primeiro-ministro não manda no parlamento, responde ao parlamento". É com estas palavras que o CDS responde a António Costa, que veio defender que o projeto de lei dos centristas que elimina a taxa adicional ao Imposto Sobre Produtos Petrolíferos (ISP) - aprovado na Assembleia da República na última quinta-feira - não terá, para já, qualquer "tradução prática".»

Diário de Notícias, Junho de 2018

 

 

11
Mai18

A consciência de Ulisses Pereira

David Crisóstomo

"Participar nas votações" é um dos deveres dos membros da Assembleia da República, como frisa a alínea c) do n.º1 do artigo 14º do Estatuto dos Deputados. Mais, é também um dever consagrado na Constituição da República Portuguesa, na alínea c) do seu artigo 159.º. Não estamos, portanto, perante um mero direito que pode ser abdicado de forma leve - é uma obrigação prevista na lei fundamental da República.

 

Atentemos a este excerto do momento em que se inicia o processo de votações às alterações ao Decreto da Assembleia 196/XIIIvetado pelo senhor Presidente da República, e sobre o qual regressou o dilema manifestado também em março passado:

 

 

Ora bem, à semelhança do que já tinha acontecido nas votações na generalidade e final global, também nas votações no âmbito da reapreciação do decreto houve vários parlamentares que tiveram a necessidade de fazer declarações de interesses, ao abrigo do artigo 27º do Estatuto dos Deputados:"Os Deputados, quando apresentem projecto de lei ou intervenham em quaisquer trabalhos parlamentares, em comissão ou em Plenário, devem previamente declarar a existência de interesse particular, se for caso disso, na matéria em causa". Tal sucedeu com António Lima Costa, por exemplo. Mas nesta votação testemunhou-se também a inusitada posição de Ulisses Pereira, que escolhe invocar não o referido artigo 27.º do Estatuto dos Deputados, mas o n.º3 do artigo 8.º (referente à situação da Perda de Mandato), que explicita: 

"a invocação de razão de consciência, devidamente fundamentada, por Deputado presente na reunião é considerada como justificação de não participação na votação".

 

Nas votações anteriores deste processo legislativo, Ulisses Pereira nunca tinha declarado qualquer eventual interesse particular. Todavia, na da passada sexta-feira, optou por decretar à câmara que não participaria naquelas votações. Como se pode observar, Jorge Lacão, o presidente da AR em exercício (em virtude da baixa de Ferro Rodrigues por motivos de saúde), bem tenta explicar ao deputado social-democrata que seria útil que fosse um pouco mais claro na fundamentação sobre as suas razões, mas mais não consegue mais do que umas vagas declarações de Ulisses Pereira sobre as matérias que alegadamente estariam na origem da declaração que teria enviado aos serviços de apoio ao Plenário. Jorge Lacão desiste, toma nota, e o processo continuou. 

 

Todavia, não estou certo que devia ter continuado.

 

A verdade é que esta faculdade parlamentar tem sido raramente invocada - aliás, só há registo de em outras duas ocasiões ter sido utilizada explicitamente em Plenário: por Vera Jardim para em 2010 não votar o voto de condenação pelas ações levadas a cabo pelo Governo francês que visaram a expulsão de cidadãos ciganos e por Jamila Madeira no ano passado, que tentou invocar esta possibilidade (conjuntamente com o artigo referente aos conflitos de interesses) aquando de uma deliberação agendada (que acabou por não se realizar) para não votar um conjunto de projetos de resolução referentes ao setor energético ("por razão de consciência e por eventual conflito de interesses, declaro que não participarei na votação"); em 2009, o então Presidente Jaime Gama interpretou a recusa de Zita Seabra, Regina Bastos e Henrique Rocha Freitas de votar o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico como também tendo sido motivada por "razões de consciência", ainda que nenhum dos três o tenha proclamado na sessão plenária. Em todos os casos, e à semelhança deste, a expressão "devidamente fundamentado" parece ter sido ignorada, pois nenhum tentou justificar adequadamente realidade que constrangia alegadamente a sua consciência (e, ao contrário do que se passou na última semana, sem nenhuma tentativa da Mesa da Assembleia para tentar obter o esclarecimento legalmente exigido).

 

Como o vídeo demonstra, o deputado Ulisses Pereira claramente não apreciou a insistência do Presidente em obter explicações sobre a sua invocação de "razões de consciência" para se escusar de cumprir o seu dever parlamentar. Ao primeiro pedido de Jorge Lacão, o deputado social-democrata explica: "Compreendo que estar a justificar razões da nossa consciência, naturalmente que é um exercício difícil, mas eu fá-lo-ei, já o fiz através da declaração que enviei aos serviços [de apoio ao Plenário] com uma conjugação de uma série de factores que têm a ver com questões de ordem pessoal, que têm que ver com questões de ordem política, que têm que ver com questões de ordem de disciplina de voto. Portanto, foi um conjunto dessas questões. Se for outro entendimento da Assembleia, naturalmente que me retirarei e não votarei da mesma forma". O Presidente, não satisfeito com clara ausência da fundamentação devida, esclarece que a sua exigência legal é "para que se compreenda, não [para] sindicar a consciência do senhor deputado, mas [para] que seja transparente a fundamentação dessa invocação para não participar numa votação. O senhor deputado esclareceu que emitirá essa fundamentação para efeitos de registo. Ora, o que aqui se diz é que a fundamentação deve ocorrer estando o deputado presente na reunião em que se coloque. O senhor deputado invoca motivos de ordem pessoal - senhor deputado, obviamente que a Mesa jamais o faria, não tutela a consciência de nenhum deputado. O senhor deputado considera que limitando-se a uma clausula geral de ordem pessoal fica devidamente fundamentada a questão de consciência?". A inquirição final do Presidente é rebatida pelo parlamentar de forma muito singela: "eu não gostaria de entrar no detalhe das questões que invocam a minha consciência, mas se for preciso também irei lá", e Lacão conclui então a questão com um "vou deixar isso ao seu critério e depois peço-lhe que pondere as razões da lei sobre a fundamentação devida".

 

Jorge Lacão fez bem em insistir. "Devidamente fundamentado" não é uma expressão que tenha sido inserida no artigo em questão com um significado equivalente a "diga assim por alto o porquê da coisa". Em 2009, o Supremo Tribunal Administrativo defendia que "a fundamentação é, como a jurisprudência e a doutrina têm repetidamente afirmado, um requisito formal do acto que varia em função do seu tipo legal, a qual se destina a responder às necessidades de esclarecimento do seu destinatário. Deste modo, pode afirmar-se que o acto está fundamentado sempre que o seu destinatário fica devidamente esclarecido acerca das razões que o motivaram, isto é, sempre que o mesmo exponha com suficiência e clareza as razões de facto e de direito que conduziram à sua prática, revelando desse modo o seu iter cognoscitivo e valorativo (...)". E como o Presidente indicou, estamos também no domínio do escrutínio e da transparência - não é apenas o Plenário que tem o direito a conhecer as razões que levam a que um deputado suspenda momentaneamente o seu dever constitucional, é também obviamente um direito que assiste ao cidadão representado.

  

O deputado Ulisses Pereira manifestou um claro aborrecimento e incómodo por ter que explicar porque tinha decidido que o seu dever de participar nas votações poderia ser dispensado naquela altura, revelando a "ordem das questões" que motivaram então a sua consciência. Mas mesmo no domínio das ditas "ordens", há duas em que não se compreende o embaraço do senhor deputado: nas questões de ordem política e nas de ordem de disciplina de voto. Na primeira, parece-me óbvio: desde quando é que não se expõem as questões políticas que motivam (e condicionam) um determinado sentido de voto? Não cai, nem nunca caiu, sobre matérias de ordem eminentemnte política nenhum manto de secretismo; na segunda, é mais simples - o conceito de "disciplina de voto" é uma matéria da vida interna do grupo parlamentar a que o deputado pertence e que não tem qualquer reconhecimento regimental, estatutário ou constitucional (n.º 1 do artigo 155º e n.º 1 do artigo 157º da CRP), pelo que sendo o deputado livre de definir o seu voto sobre os critérios que bem entender, não existe todavia qualquer proteção especial para o critério da "disciplina de voto". No que diz respeito às questões de "ordem pessoal", será de facto uma matéria externa a vida pública e política e que só ao deputado dirá respeito - exceto quando tais questões entram num aparente conflito com os deveres do representante eleito da população à Assembleia da República - nesse caso, lamento imenso, mas sim, faça favor de no mínimo detalhar um pouco mais porque motivo as suas questões pessoais o isentam das obrigações a que escolheu estar sujeito quando tomou posse.

 

Não discordando da premissa que caberá sempre ao deputado a palavra final sobre o que entrará ou não em conflito com sua consciência, importa sublinhar também que "razões de consciência" não é uma formulação indefinida onde pode caber todo e mais algum motivo para desobrigar um parlamentar de exercer o seu mandato popular. Ainda que introduzida no Estatuto dos Deputados em 2003, é justo considerar que esta exceção é sucessora de outra que existiu no mesmo artigo do Estatuto entre 1993 e 2001 e que dizia no seu n.º 3  que "em casos excepcionais, as dificuldades de transporte podem ser consideradas como justificação de faltas, bem como a invocação prévia da objecção de consciência" - e objeção de consciência é um conceito onde com certeza não caberão "questões de ordem de disciplina de voto". E acresce que fiquei algo curioso sobre as razões políticas ou pessoais que, numa matéria referente à regulamentação profissional dos atos de arquitetos e engenheiros, possam entrar em conflito com motivos de ordem religiosa, moral, humanística ou filosófica do deputado. 

 

Não sabemos (ou eu não sei, pode ser que quem fosse vivo e maior de idade à época se recorde) as razões dos legisladores quando nas duas ocasiões decidiu criar esta exceção ao dever de participar nas votações no Estatuto dos Deputados [em ambos os processos legislativos esta disposição parece ter sido introduzida no processo da especialidade, sem se definir o(s) autor(es) e a(s) sua(s) intenção(ões), não estando disponível online os relatórios dos processo da especialidade que nos esclareçam sobre este aspeto]. Contudo, parece-me altamente questionável que tenham introduzido esta possibilidade para permitir que os deputados se escusassem de votar matérias com as quais tenham visões opostas ao da maioria do seu grupo parlamentar ou onde pudessem ter um eventual interesse particular, profissional ou não.

 

Um cidadão quando se candidata à função de deputado à Assembleia da República está a manifestar a intenção de assinar um contrato com os cidadãos, comprometendo-se a representa-los e a legislar em seu nome consoante a sua interpretação e visão da sociedade e do programa político que acompanhou a sua eleição. Existindo porventura motivos que impeçam um deputado de participar em votações (a sua ausência da sessão plenária, por exemplo), o dever mantém-se como imperativo quando o deputado está presente e pertence ao quórum que compõe o parlamento naquela sessão de votações. O Estatuto dos Deputados concede uma hipótese para situações altamente excecionais onde este dever pode ser suspenso temporariamente face a uma votação que origine um conflito com a consciência do parlamentar. Face a esta realidade, o mínimo que o deputado pode fazer face aos eleitores que representa é, cumprindo o disposto no Estatuto, apresentar uma fundamentação que nos permita eventualmente compreender a sua decisão. Caso contrário, o cidadão fica perante um ato inescrutável de um daqueles que se comprometeu a agir em seu nome. E é bom que se tenha isto presente na consciência. 

 

 

 

18
Abr18

Para as viagens às ilhas há uma solução simples: o artigo 17º.

David Crisóstomo

 

Indo diretamente ao ponto: leia-se aqui o n.º 1 do artigo 17º da Resolução da Assembleia da República n.º 57/2004, com as seis alterações de que foi alvo e que regula os Princípios Gerais de Atribuição de Despesas de Transporte e Alojamento e de Ajudas de Custo aos Deputados:

 

1 - A aquisição de bilhetes de avião ou referentes a outros meios de transporte utilizados nas deslocações oficiais é obrigatoriamente feita pelos serviços competentes junto de agência ou agências de viagens contratualizadas na sequência de procedimento concursal realizado para a prestação simultânea de serviços de viagens e alojamento.

 

Bem sei que ali está "deslocações oficiais" e a situação notada pelo jornal Expresso no sábado passado é referente a viagens de deputados aos círculos eleitorais dos Açores e Madeira (aparentemente em viagens entre o parlamento e as suas residências, ainda que a mesma questão se possa colocar em viagens para o exercício de trabalho político), mas o precedente para a resolução da temática colocada na ordem do dia é dado pela própria resolução no n.º 7 do seu artigo 1º:

 

Artigo 1.º

Deslocação de deputados durante o período de funcionamento do plenário

 

1 - A importância global para despesas de transporte dos deputados residentes no seu círculo eleitoral é igual ao produto da multiplicação da distância, em quilómetros, correspondente a uma viagem semanal de ida e volta entre a residência do deputado e a Assembleia da República pelo quantitativo fixado na lei geral para pagamento do quilómetro percorrido em automóvel próprio.

 

2 - (...)

 

3 - A importância global para despesas de transporte dos deputados residentes nas Regiões Autónomas corresponde ao preço de uma viagem semanal de ida e volta, em avião, na classe económica, entre o aeroporto da residência e Lisboa, acrescido da importância da deslocação entre o aeroporto e a residência, calculada nos termos do n.º 1.

 

4 - (...)

 

5 - Aos deputados eleitos pelo círculo da emigração da Europa, residentes no respetivo círculo eleitoral, é-lhes devida uma viagem semanal de ida e volta, em avião, na classe mais elevada praticada, entre o aeroporto da cidade de residência e Lisboa, acrescida da importância da deslocação entre o aeroporto e a residência, calculada nos termos do n.º 1.

 

6 - Aos deputados eleitos pelo círculo de emigração fora da Europa, residentes no respetivo círculo eleitoral, são-lhes devidas duas viagens mensais de ida e volta, em avião, na classe mais elevada praticada, entre o aeroporto da cidade de residência e Lisboa, acrescidas da importância da deslocação entre o aeroporto e a residência, calculadas nos termos do n.º 1.

 

 

7 - Às deslocações previstas nos n.ºs 5 e 6 aplica-se o artigo 17.º, n.º 1.

 

 

Isto é, ao contrário do que acontece nas deslocações para as Regiões Autónomas e apesar de o meio de transporte ser idêntico - o avião - a Assembleia da República assume que a aquisição das deslocações dos deputados eleitos pelos ditos círculos da Emigração deve ser feita pela agência de viagens contratualizada pelo parlamento para esse efeito.

Aliás, nas viagens para trabalho político (e diferindo das condições dadas aos restantes parlamentares, mas à semelhança do que acontece nas viagens oficiais) os deputados eleitos pelos círculos da Europa e Fora da Europa têm que apresentar obrigatoriamente o bilhete ou bilhetes dos transportes utilizados e dos cupões dos cartões de embarque correspondentes (n.º 7 do artigo 4º da Resolução já mencionada).

 

Pelo que, como afirmo no título deste post, no interesse de uma resolução o mais célere e imediata possível da questão das deslocações dos deputados açorianos e madeirenses, o mais fácil e simples seria simplesmente emendar o n.º 7 do artigo 1º de modo a incluir estes na exceção já referida, passando assim o parlamento a encarregar-se das transações financeiras decorrentes das viagens dos deputados insulares (e, já agora, emende-se também o artigo 5º, de modo a que as viagens para trabalho político dos deputados dos arquipélagos passem a ter as mesmas obrigações que as dos deputados de fora do território nacional). E pronto, acabou-se, caso resolvido, apresente-se o projeto de resolução, agende-se para votação esta sexta e encerramos este assunto ainda esta semana. 

 

 

Todavia, como ontem bem notou o Pedro Adão e Silva no O Outro Lado na RTP3, parece que nos últimos tempos andamos com uma constante "bomba relógio" no regime de funções de deputados, seja por factos declarados ou omitidos. Este "penso rápido" que aqui sugiro é apenas isso e não previne eventuais problemas futuros nesta matéria - exemplos potenciais: um deputado estudante que tenha 25 anos e se desloque de avião à Horta ou ao Funchal ou de comboio a Viana do Castelo ou a Celorico da Beira e usufrua das tarifas especiais na compra dos seus bilhetes não estará potencialmente na situação hoje analisada para os deputados dos Açores e Madeira?; um parlamentar que acumule milhas na TAP (não permitido nas viagens oficiais) em viagens ao Porto ou usufrua de descontos na CP relacionados com a sua atividade profissional nas viagens a Faro não estará também neste âmbito?; e como sustentar a desigualdade de exigências e procedimentos para os deputados provenientes do território continental, na medida em que para as suas despesas de deslocação recebem somente e automaticamente um subsidio lump-sum

Ainda sobre este assunto, recomenda-se também a leitura do Memorando emitido pelo Secretário-Geral da Assembleia da República (que, permitam-me a crítica, devia estar acessível no portal do parlamento - foi enviado aos jornalistas e a nota enviada à comunicação social informa que este documento foi "tornado público", mas, acrescento eu, um documento tornado público que não é publicado em lado algum de pouco serve à causa da transparência), que além de descrever o método de pagamento e processamento destas ajudas, relembra que antes da existência destes subsídios à mobilidade insular existiam os descontos automáticos no custo do bilhete de avião feito pelas transportadoras.

 

Esta minha sugestão não dispensa todavia (bem pelo contrário) uma revisão e atualização integral de todo o regime das ajudas de custo e das condições financeiras que os parlamentares têm para o pleno exercício do seu mandato (e aqui, também é relevante dizê-lo, a Assembleia da República está longe de ser das mais generosas face às suas congéneres a nível europeu).

 

Claro está, esta constante "descoberta" de métodos e procedimentos do parlamento que são alvo de crítica e exaltação pública desgasta a sua imagem e tem o efeito potencial de minar a confiança dos cidadãos na câmara parlamentar nacional que os representa. Contudo, na lógica do copo meio cheio, prefiro observar pelo prisma que o Pedro Adão e Silva analisou - há mais exigência, mais atenção e maior escrutínio público à ação do parlamento. Que, é bom notar, tem uma estrutura (leia-se, os funcionários do parlamento) que tem sabido responder adequadamente a este maior nível de interesse pela Assembleia da República, sendo atualmente um dos parlamentos nacionais europeus que mais informação e documentação disponibiliza publicamente. Mas que, claro, ainda tem por onde melhorar no domínio da transparência.

 

18
Mar18

Não votar? É proibido, mas pode-se fazer.

David Crisóstomo

Venho aqui chamar a atenção para a votação final global do texto final que, se promulgado, dará a possibilidade aos engenheiros de assinarem projetos de arquitetura. Creio. É algo assim. Estou manifestamente a leste do (polémico) assunto, confesso. Mas este texto não é sobre o que foi aprovado. É sobre a forma como foi aprovado. 

 

O momento da votação está no vídeo abaixo e nele é observável que vários deputados, ao abrigo do artigo 27º do Estatuto dos Deputados, declaram previamente à câmara a existência de um "interesse particular" no diploma a ser votado, quer por serem eles mesmos arquitetos ou engenheiros ou por terem familiares diretos nessa situação.

 

 

 

Sara Madruga da Costa declarou ser casada com um arquiteto, e como tal, deteria um interesse particular. António Lima Costa, engenheiro civil, declara também um interesse particular. João Torres declarou que, "apesar de não ter interesse particular na matéria, sou membro da ordem dos engenheiros". Luís Leite Ramos afirmou estar na mesma situação. Jorge Falcato Gomes informou que é arquiteto e, assim sendo, tem um interesse particular na matéria prestes a ser votada. Pedro Coimbra declarou que "apesar de ser licenciado em engenharia civil, não tenho nenhum interesse particular nesta votação e votarei em consciência" (sim, nem eu nem a Mesa da Assembleia percebemos a necessidade desta declaração). Fátima Ramos afirmou o seu "impedimento" (?). Maurício Marques informa que tem um interesse particular. Luís Vilhena pediu "para fazer uma declaração de interesses, só para informar que não tenho nenhum familiar que seja engenheiro, engenheiro técnico, técnico de engenharia, sou arquiteto, licenciado pela Faculdade de Arquitetura de Lisboa, e o que está em causa aqui é o interesse público, não está em causa qualquer interesse particular" (se não está em causa um interesse particular seu, interveio porquê? Para expor o seu CV?). Hugo Pires declarou ter um interesse particular no tema que iria ser votado. E, por fim, António Topa declara também ter um "interesse pessoal". 

 

A mesma abundância de declarações de interesses já se tinha verificado aquando da votação da generalidade. E apesar de pouco frequente, a existência destas é de saudar pois o Estatuto dos Deputados decreta que estes "devem previamente declarar a existência de interesse particular, se for caso disso, na matéria em causa."

 

O que já não merece a mesma aclamação é o corolário que alguns deputados tiraram deste dever de à priori declararem eventuais conflitos de interesses - que começou logo com a deputada Sara Madruga da Costa que, por ser casada com um arquiteto tirou a conclusão que teria que se "ausentar da votação", saindo da sala de imediato. E ainda que não tenho sido clara, Fátima Ramos parece não ter participado na votação (tinha afinal "algumas dúvidas sobre a possibilidade votar", sem esclarecer onde estaria a base desse questionamento), pois ao contrário da quase totalidade dos seus colegas de bancada, permanece imóvel sentada em todo o momento de votação. E parece ter havido outros casos, pois a deputada Isabel Moreira refere que "várias deputadas e vários deputados do PSD saíram da sala por entenderem que tinham um interesse particular".

Como é também referenciado por Isabel Moreira, o deputado João Oliveira já tinha manifestado a sua incredulidade face à situação aquando da declaração de Sara Madruga da Costa: "aquilo que diz o Estatuto dos Deputados não é que os deputados se ausentam ou deixam de votar, porque isso implicava a alteração da composição da Assembleia da República, os deputados devem fazer uma eventual declaração de interesse particular mas participam na votação, que é o que diz o artigo 27 do Estatuto".

Se face ao esclarecimento de João Oliveira, Ferro Rodrigues dá apenas a parca de resposta de que "fica à consideração de cada deputado o procedimento", em resposta ao pedido de Isabel Moreira de realização de uma nova votação, mas de forma nominal, do mesmo texto final, Ferro Rodrigues faz registar: "há muitas votações em que há pessoas que depois de ser visto o quórum, saem. Não é que seja uma prática correta, mas isso existe. Portanto não vamos abrir aqui uma exceção para deputados do PSD, que até anunciaram a sua saída". E isto pode ser mais grave do que parece.

 

Pois não só não pode ficar "à consideração de cada deputado o procedimento" (como assim? cada um faz o que entender e inventa faculdades de exercício do mandato parlamentar que o Estatuto dos Deputados e o Regimento da Assembleia da República não admite?), como o facto de um deputado à Assembleia da República recusar exercer o dever máximo do seu mandato - o de votar em Plenário - não é apenas uma prática incorreta. É uma prática que não devia ser admissível. Mas como no icónico sketch de Marcelo e da jovem de Cascais, é inadmissível, mas faz-se. É inaceitável, mas pode acontecer. Não é uma prática correta, mas existe. Uma existência doravante registada e reconhecida pela Presidência da Assembleia. Que não gosta dela, mas aparentemente também não está para abrir exceções a uma exceção recorrente ao Regimento. 

 

É de facto recorrente, é uma práxis conhecida, e com diferentes motivos, não só os "interesses particulares", mas outros porventura mais relacionados com a visão política. Sara Madruga da Costa, por exemplo, terá feito exatamente a mesma coisa na votação da generalidade dos projetos de lei que deram origem a este texto final. O mesmo para Fátima Ramos, que também na altura declarou o seu "impedimento". Zita Seabra, Henrique Rocha Freitas e Regina Bastos também decidiram não participar na votação da proposta de resolução que em 2008 aprovou o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico. Marques Júnior saiu da sala para não participar na aprovação final global da proposta de Orçamento de Estado para 2009. Em 1996, Nuno Baltazar Mendes decidia não participar numa votação sobre medidas de reação ao incêndio na Câmara Municipal de Lisboa por ser vereador nesse mesmo município. Vitalino Canas e Jorge Bacelar Gouveia declararam não ter participado na votação que em 2010 aprovou o acordo entre a República Portuguesa e o Imamat Ismaili (ironicamente, fizeram-no através de declaração de voto). Em 2016, Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque, Carlos Abreu Amorim, Sérgio Sousa Pinto, Ascenso Simões e Paula Teixeira da Cruz terão-se ausentado propositadamente para não participar na votação de votos de pesar a Fidel Castro. Já em 2013, um voto de condenação pelo assassinato em Angola de Alves Kamulingue, Isaías Cassule e Manuel Ganga levou a que Mário Simões se ausentasse da sala. No ano passado Paula Teixeira da Cruz declarou ao parlamento que se ausentaria da discussão e votação de projetos referentes à poluição na ribeira da Boa Água. Luís Leite Ramos declarou em 2015 que não participaria numa votação referente ao regime jurídico aplicável ao exercício da atividade da construção. António José Seguro decidiu não participar numa votação que em 2002 alterava o regime das farmácias sociais. E Teresa Leal Coelho foi para os Passos Perdidos no momento da votação do projeto de referendo à adoção e coadoção em casais do mesmo sexo em 2014 de modo anunciar a sua discordância com a matéria votada e a sua demissão da direção do grupo parlamentar do PSD. Entre outros casos que certamente existirão, dado que estes são apenas os que são de conhecimento público. O que não quer dizer que não tenham também havido deputados que, em protesto contra algo na metodologia da votação ou na condução do processo legislativo, se tenham recusado a participar em votações - deputados do PEV fizeram-no em 1988, deputados do MPD em 1985 e deputados do PSD em 1982, por exemplo.

 

A alínea c) do n.º1 do artigo 14º do Estatuto dos Deputados e a alínea c) do artigo 159.º da Constituição da República Portuguesa contudo não deixam margem para considerações: "Participar nas votações" é um dos deveres dos deputados à Assembleia da República. Sendo ambas as disposições retiradas do Regimento da Assembleia da Constituinte, que já estabelecia estes deveres fundamentais dos eleitos em democracia.

 

O Estatuto dos Deputados admite, contudo, uma exceção a este dever: no n.º3 do artigo 8º (referente à Perda de Mandato) pode ler-se que "a invocação de razão de consciência, devidamente fundamentada, por Deputado presente na reunião é considerada como justificação de não participação na votação" - uma possibilidade reintroduzida na revisão do Estatuto em 2003, em virtude das alterações ao regime de faltas. Esta prerrogativa foi invocada por exemplo por Vera Jardim para em 2010 não votar o voto de condenação pelas ações levadas a cabo pelo Governo francês que visaram a expulsão de cidadãos ciganos - ainda que não o tenha "devidamente fundamentado". Ainda no ano passado Jamila Madeira também tentou invocar esta possibilidade excecional (também sem a alegada necessária devida fundamentação) aquando de uma votação agendada (que acabou por não se realizar), conjuntamente com o artigo referente aos conflitos de interesses, para não votar um conjunto de projetos de resolução referentes ao setor energético ("por razão de consciência e por eventual conflito de interesses, declaro que não participarei na votação") - uma situação na altura também denunciada por João Oliveira: "é importante clarificar que os Deputados não podem deixar de participar na votação, têm é de declarar o eventual interesse particular, sob pena de o colégio eleitoral ficar alterado e isso dar, obviamente, complicações, do ponto de vista da votação".

 

O Regimento da Assembleia da República é, todavia, cristalino: "Nenhum Deputado presente pode deixar de votar sem prejuízo do direito de abstenção", diz o n.º2 do artigo 93º. Mas, apesar de tudo, faz-se. Há quem interprete esta disposição de forma bastante restritiva: o "presente" refere-se à presença na sala das sessões, pelo que se o deputado se levantar, sair da sala por 2 minutos e depois voltar a entrar, com o claro propósito de "deixar de votar" um determinado diploma, o problema fica resolvido - quando é evidente que a presença é referente à sessão plenária em que decorre as votações e não à sua literal presença física na sala (ou passariam a ser desconsiderados todos os votos de deputados que frequentemente vão saindo e entrando da sessão plenária enquanto decorrem votações). E nem sempre a Mesa da Assembleia é tão permissiva quando intenções opostas a esta disposição destas são declaradas - em 2012, por exemplo, na votação final global das alterações ao Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, Assunção Esteves não admitiu a declaração da deputada Isabel Oneto em que esta anunciava que não votaria o projeto de lei por conflitos de interesses, obrigando a deputada a abster-se. Até porque se o deputado já foi contabilizado para o quórum, a sua presença e comprometimento com a votação já é assumida e como referiu nesta sexta-feira o deputado João Oliveira "isso implicava a alteração da composição da Assembleia da República". Aliás, no parlamento português e numa votação pelo Plenário que não seja eletrónica ou nominal, a falta de um parlamentar da sessão de votações não tem atualmente qualquer efeito, pois o seu voto é sempre contabilizado como sendo aquele assumido pela sua bancada. Portanto, não é possível a qualquer deputado "subtrair-se" ao conjunto do parlamento numa votação regular. Por mais honráveis ou corajosas que certas decisões de recusa de votação possam ser consideradas por alguns, elas serão sempre inconsequentes e irrelevantes para a determinação de um resultado de uma votação por levantados e sentados - a única forma de o voto individual neste caso poder ser determinante é numa situação de discordância com a orientação do grupo parlamentar (como foi o caso da aprovação na generalidade do projeto de lei que consagraria a coadoção em casais do mesmo sexo). 

 

Portanto, o que fazer, ou que efeito prático e/ou político dar às várias declarações de recusa em participar em votações, as assumidas e as mais discretas? Foi uma pergunta que pessoalmente nos deparamos aquando da construção do Hemiciclo. A Assembleia da República não os contabiliza, nem sequer realiza um qualquer filtro no seu portal para estes casos, não lhes concedendo qualquer menção na altura de publicar os resultados de votações. E na prática, como já referi, a sua ausência não tem qualquer consequência em votações que não sejam eletrónicas ou nominais. Mas como ignorar a atitude política que representam muitas destas declarações? Como fingir que Teresa Leal Coelho ou Mário Simões, que não foram nada discretos sobre a sua decisão de recusar de votar determinados diplomas, simplesmente estavam na sala e votaram de forma idêntica à sua bancada? Ou como continuar a admitir que há cabimento regulamentar em um deputado (frequentemente para não violar uma alegada "disciplina partidária") sair da sala para não votar qualquer questão e depois regressar à sessão de votações com toda a naturalidade? 

 

Nesta sexta-feira, o Presidente da Assembleia da República (ironicamente, o único deputado a quem o Regimento concede a possibilidade ilimitada de não participar em votações) reconheceu esta realidade, admitindo que não a considerava correta, mas recusando-se a tirar qualquer conclusão naquele caso (a repetição da votação em formato nominal). Agora que este fenómeno é publicamente reconhecido como banal (e criticado) pelo presidente do parlamento em exercício, talvez pudesse ser altura de o regular, de decidir se os deputados têm ou não afinal o direito de decidir não participar em votações - e, se sim, que consequências terá essa decisão. Parafraseando o líder parlamentar do PCP há um ano: senhor Presidente, eventualmente é importante que isto seja clarificado.

 

22
Jan18

As bancadas e as votações

David Crisóstomo

 

Na edição de ontem do Diário de Notícias sou citado em nome do Hemiciclo na peça intitulada "O projeto de lei que foi rejeitado com mais votos a favor", que aborda dois episódios singulares recentes na Assembleia da República, onde um projeto de lei - Projeto de Lei n.º 670/XIII do PAN que Procede à alteração do Regime jurídico aplicável aos bombeiros portugueses no território continental, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 241/2007, de 21 de Junho - e parte de um projeto de resolução - os pontos 1, 2 e 5 do Projeto de Resolução 994/XIII do PCP relativo à Criação de um Programa para a redução e controlo da biomassa florestal - foram sujeitos a votações pelo Plenário e tiveram resultados que não coincidem com a dinâmica numérica dos deputados presentes nas respetivas sessões de votações regimentais. Rui Tavares também aborda o tema na sua crónica de hoje no Público.

 

Isto é, o projeto de lei do PAN foi rejeitado na generalidade apesar de, teoricamente, ter reunido 99 votos favoráveis (dos deputados presentes do PAN, PS e BE), 17 abstenções (PCP e PEV) e 98 votos contra (PSD e CDS-PP) no passado dia 29 de Novembro, que não terá contado com a participação de 16 deputados (15 ausentes e o Presidente da Assembleia da República que, ao abrigo do Regimento [n.º4 do artigo 93º], não participou nesta votação). Já a maioria dos pontos do projeto de resolução do PCP foi aprovada apesar de, teoricamente, ter reunido 94 votos a favor (dos deputados presentes do PCP, PEV, PAN e PSD), 16 abstenções (CDS-PP) e 96 votos contra (PS e BE) na passada sexta-feira, onde 24 deputados não terão participado nas votações (23 ausências e o Presidente da Assembleia). Dado que ambos os casos não exigiam maiorias especiais constitucionalmente consagradas, a votação decorreu com o método geral de "levantados e sentados" (ou seja, sem recurso à votação eletrónica).

 

Estes números destas votações são, claro está, teóricos por resultarem de um cruzamento de dados que o Hemiciclo faz entre os resultados das votações e a verificação eletrónica do quórum que sempre ocorre no inicio de cada período de votações pelo Plenário, de modo a permitir um escrutínio público da forma como cada deputado vota cada diploma em cada fase. Nesta verificação (e na subsequente correção por falhas ou dificuldades de registo, que os números do Hemiciclo já refletem) os deputados presentes registam-se nos lugares das suas bancadas para garantir a existência de um quórum mínimo de parlamentares (116 deputados) na sala das sessões para o inicio de deliberações. Todavia, como na Assembleia da República é permitido que os deputados saiam da sala após iniciado o período de votações (e voltem a entrar) - muitos deputados usando esta faculdade para, numa plausível afronta ao n.º2 do artigo 93º do Regimento ("Nenhum Deputado presente pode deixar de votar sem prejuízo do direito de abstenção"), saírem da sala para propositadamente evitar votar um determinado diploma - estes números e a imagem que o Hemiciclo apresenta do Plenário naquela votação é um cenário que pode não corresponder exatamente a quem de facto votou um determinado diploma. Contudo, para efeitos de responsabilização política (e à falta de um registo mais preciso), consideramos justo considerar que se um deputado se registou como presente naquela sessão de votações e não manifestou um voto distinto ao anunciado pelo seu grupo parlamentar, então ter-se-á sujeitado à posição assumida pela bancada e estará vinculado àquele sentido de voto como sendo o seu. O mesmo, contudo, consideramos já não ser politicamente justo para os parlamentares que não se tenham registado como parte do Plenário, estando assim ausentes daquela sessão de votações.

 

Sem embargo, juridicamente falando, o Hemiciclo segue as indicações da Mesa da Assembleia (e, como tal, as páginas referentes aos dois projetos em causa nunca apresentaram um outro resultado que não aquele que foi anunciado pela Mesa após as respetivas votações), que como é descrito na peça do Diário de Noticias, tem um entendimento distinto ao abrigo do nº3 do artigo 94º do Regimento:

"Nas votações por levantados e sentados, a Mesa apura os resultados de acordo com a representatividade dos grupos parlamentares, especificando o número de votos individualmente expressos em sentido distinto da respetiva bancada e a sua influência no resultado, quando a haja."

Para o parlamento, a "representatividade dos grupos parlamentares" é assim juridicamente medida como sendo referente ao total de deputados que cada grupo parlamentar contém, independentemente do registo da sua presença na sessão de votações.

 

A questão não é necessariamente nova. Ao depararmo-nos com esta aparente contradição numérica, verificamos de imediato as bases de dados das milhares de votações que o Hemiciclo disponibiliza desde 2009 para apurarmos se poderiam ter existido outras situações análogas - e não encontrámos qualquer outro caso. Falamos com jornalistas e procuramos perceber se havia memória de algo semelhante e, fora o episódio da Lei da Programação Militar de 2001, ninguém se recorda de uma aparente divergência entre o resultado anunciado pela Mesa e as presenças verificadas na sessão de votações.

 

Resumidamente, para os que não estão recordados: em 2001 foi aprovada em votação final global a proposta de lei que aprovou a Lei da Programação Militar - uma lei orgânica que, assim sendo, carece de aprovação na votação final global por maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções (116, portanto). Em 2001 o mecanismo da votação eletrónica era inexistente (é aliás criado em 2003 como resposta à polémica suscitada por este caso) e a votação ocorreu com o método dos "levantados e sentados". Todavia, por denúncia do agora Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e do jornal Expresso, é tornado público que não estavam na sala 116 deputados (do PS e CDS-PP) no momento daquela votação. Apesar de vários apelos para que devolva o decreto aprovado ao parlamento, o então Presidente da República Jorge Sampaio baseia-se na garantia da prática parlamentar dada pelo então Presidente da Assembleia da República, António Almeida Santos, para promulgar aquele diploma (uma atuação que teve como consequência a demissão de Marcelo Rebelo de Sousa do Conselho de Estado). Sampaio promulgou mas encomendou também a cinco constitucionalistas (Gomes Canotilho, Vieira de Andrade, Freitas do Amaral, Galvão Teles e Jorge Miranda) pareceres sobre a questão do método de votações e em Maio de 2002 envia uma mensagem de apelo à Assembleia da República referente ao seu procedimento legislativo, da qual destaco os seguintes excertos:

"Acontecimentos verificados na última legislatura introduziram algumas notas de perturbação e suscitaram algumas incertezas que importa ver dissipadas no estrito interesse do bom funcionamento e da imagem do Estado democrático e, como sempre tenho defendido, da dignificação e prestígio da instituição parlamentar. De facto, a partir do momento em que a prática até então institucionalizada e baseada na acreditação, por parte do Presidente da República, da declaração de aprovação que lhe é transmitida pelo Presidente da Assembleia da República foi questionada, o problema deixou de ser uma questão meramente interna da Assembleia da República. Toma-se necessário adoptar procedimentos e chegar a soluções regimentais que garantam ou evidenciem a inatacabilidade da regularidade processual de aprovação parlamentar dos decretos que o Presidente da República é chamado a promulgar."

"Assim, não parece razoável que dez ou vinte anos após a aprovação e entrada em vigor de uma lei se possa pôr em causa a respectiva validade e a estabilidade dos efeitos jurídicos entretanto produzidos com. fundamento, por exemplo, na apresentação de uma fotografia ou prova testemunhal, de um video ou filme através dos quais se procure demonstrar que Deputados dados como presentes no momento da votação afinal estavam ausentes. Tal como não parece aceitável, à luz dos princípios estruturantes de uma democracia representativa dos nossos dias que a ausência de alguns Deputados no estrangeiro em missão oficial da Assembleia da República possa determinar, no momento de votação de uma lei, a inversão da maioria política parlamentar que resultou da escolha popular."

"Como sempre tem acontecido desde praticamente o início do funcionamento da Assembleia da República, não há, em geral, quaisquer, indicações que permitam verificar a existência de quorum deliberativo, nas comissões e em plenário, ou o número de votos efectivamente obtido pelos decretos enviados para promulgação como lei e respectivas disposições, seja no que respeita à votação final global seja às votações na especialidade. Há, assim, um perigo de incerteza jurídica tanto mais elevado quanto a Constituição exige, em determinados casos, a aprovação por maiorias qualificadas, pelo que, nessas circunstâncias, a possibilidade de um conhecimento preciso daqueles dados é condição de verificação da regularidade do processo legislativo parlamentar e de determinação da validade de algumas leis e das suas eventuais alterações."

 

Os cinco pareceres dos constitucionalistas chegam a diferentes conclusões sobre a admissibilidade do voto por bancada e eventuais alterações ao regimento, mas todos parecem consensuais na rejeição do método, até então vigente, de usar os "levantados e sentados" para as votações que exigem uma maioria qualificada. Socorrendo-me da síntese feita por Ana Vargas e Laura Lopes Costa em O Parlamento Na Prática (Assembleia da República, 2008):

  • O Professor Doutor José Gomes Canotilho, no que concerne ao acordo parlamentar que é objeto do parecer, considera que o mesmo não é inconstitucional "se e na medida em que se limitou a dar expressão a princípios densificadores do princípio da funcionalidade do parlamento e que não contendem com as regras e princípios constitucionalmente estabelecidos". Por outro lado, entendo que a contagem segundo a distribuição partidária dos votos não pode substituir as regras constitucionais quanto ao quórum de presenças e quanto às maiorias exigidas pela Constituição. Considera, igualmente, que a omissão da referência ao número de votos obtidos e ao número de Deputados que participaram na votação também não é uma prática violadora da Constituição na medida em que não pretenda esconder as inconstitucionalidades eventualmente existentes quanto ao quórum deliberativo e às maiorias requeridas para aprovação de diplomas legislativos. Quanto a soluções para a flexibilização dos procedimentos legislativos, afasta a possibilidade de delegação de voto, bem como a substituição do Deputado e de um conjunto de Deputados pelo grupo parlamentar.
  • Para o Professor Doutor José Carlos Vieira de Andrade é de admitir a formação de práticas correntes de simplificação e flexibilização do procedimento legislativo, desde que as mesmas "sejam consensuais, não afetem os direitos individuais dos deputados ou das minorias e não adulterem a verdade material da votação e a sua representatividade democrática", bem como se restrinjam à "aprovação de leis simples e ao dia-a-dia parlamentar", sendo que a feitura de leis orgânicas e de leis de procedimento reforçado obrigaria a um maior rigor na aplicação dos procedimentos constitucionais.
  • O Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral distingue as leis que podem ser aprovadas por maioria simples daquelas para as quais é exigida maioria qualificada para responder à questão de admissibilidade ou não de se proceder ao apuramento do resultado da votação por bancada. Afirma que no caso das primeiras, não há qualquer violação da Constituição, podendo e devendo Assembleia da República adotar um voto por grupo parlamentar, por forma a evitar situações de não comparência justificada possam dar lugar a resultados não conformes com a real composição das forças políticas representadas no Parlamento. No que respeita às segundas, considera que a prática parlamentar de voto por bancada ofende a Constituição, não podendo ser admitida, em virtude de ir contra a pretensão do legislador constituinte ao consagrar as maiorias qualificadas, que é a atribuição de um direito de veto às minorias. Conclui considerando que a regra de votação por bancada se assume como uma convenção parlamentar contra constitutionem.
  • No entendimento do jurisconsulto Miguel Galvão Teles, que considerou este costume parlamentar praeter constitutionem, dever-se-ia consagrar, no Regimento da Assembleia da República, o costume parlamentar que consiste na possibilidade de qualquer Deputado requerer, a todo o tempo, em verificação do quórum de funcionamento antes da votação e não obrigação do Presidente da Assembleia o verificar, também a todo o tempo. Este jurisconsulto defende que um procedimento legislativo parlamentar democraticamente adequado deverá assegurar "a conformidade da 'vontade real' a exprimir nas deliberações com uma 'vontade hipotética real' correspondente aos resultados eleitorais". Defende, igualmente, nos casos em que os Deputados estejam ausentes em serviço do Parlamento, o voto antecipado ou por correspondência e o voto por procuração, bem como a consagração do direito ao adiamento da votação quando o voto do Deputado ausente possa ser decisivo para o sentido da deliberação, para os casos de impedimento súbito.
  • No seu parecer, o Professor Doutor Jorge Miranda começa por salientar o dever dos Deputados participarem nas votações, que decorre do Estatuto dos Deputados e do Regimento da Assembleia da República. Neste sentido, considera que a prática de votação por bancada é contrária às normas constitucionais e regimentais e não pode ser qualificada como costume por não existir a convicção da sua obrigatoriedade no Parlamento e por não haver o seu conhecimento por parte dos demais órgãos de soberania. Defende ainda a racionalização do funcionamento da Assembleia da República, tendente à inexistência de sobreposição de tarefas, por forma a ser possível aos Deputados estarem presentes no hemiciclo no momento das votações. Nos casos de ausências, aponta como soluções: o voto antecipado (conforme o estabelecido, com as devidas alterações, na legislação eleitoral e referendária), nas ausências por viagens ou deslocações em missão da Assembleia ou por doença grave; o adiamento da votação a pedido do grupo parlamentar afetado, com os limites da não obstrução, nos casos de atrasos ocasionais.

Acrescente-se ainda, claro, a opinião do professor Marcelo Rebelo de Sousa, também ele constitucionalista.

 

A alteração ao Regimento da Assembleia da República de 2003 é das mais extensas à qual o regimento foi sujeito. Entre as múltiplas alterações, consagrou-se o método de votação eletrónica para as votações que exigem maioria qualificada, bem como o aumento das situações em que um requerimento de pelo menos 10 deputados dá origem a um processo de votação nominal; o regimento passou também a consagrar no artigo 92.º (antes o 101.º) que "as deliberações são tomadas à pluralidade de votos, com a presença da maioria legal de Deputados em efetividade de funções, previamente verificada por recurso ao mecanismo eletrónico de voto e anunciada pela Mesa, salvo nos casos especialmente previstos na Constituição ou no Regimento". Outras sugestões, como as feitas pelos professores Galvão Teles e Jorge Miranda para os votos dos deputados ausentes em missão parlamentar, não foram aceites. 

 

A Assembleia da República não se encontrava tão politicamente fracionada desde os anos 80 - e se as sondagens mais recentes projetam a possibilidade de uma maior concentração futura de deputados no grupo parlamentar do PS em prejuízo das bancadas do PSD e CDS-PP, nada indica que o cenário de divisão multipolar regrida para visões passadas do Plenário. Esta uma realidade que o próprio parlamento se está a ajustar, inclusive na saudável inclusão nos trabalhos na maior extensão possível do deputado que, tendo sido eleito numa lista partidária autónoma, não pôde constituir grupo parlamentar (PAN). E esta realidade convive com uma sociedade portuguesa cada vez mais exigente (e, diria, saudavelmente mais interessada) nos trabalhos do seu parlamento nacional. Tal situação acarreta desafios na forma que certos "costumes" são aplicados aos dias de hoje - afinal, quantos não foram aqueles que em 2015 acusaram o parlamento de contrariar a sua tradição ao não atribuir a presidência da Assembleia da República à força política que mais deputados elegeu?

 

Hemiciclo é absolutamente neutro e respeita integralmente a posição e interpretação assumida pela Mesa da Assembleia. Mas eu, pessoalmente, não sou - e, como tal, revejo-me integralmente no parecer e soluções propostas pelo professor, ex-deputado e deputado constituinte Jorge Miranda em 2002. Se já me perturba que o "sair da sala para não votar" seja um posição política admissível e invariavelmente inconsequente, mais me incomoda que se parta do princípio automático de que quem está ausente concorda sempre com a posição maioritária do respetivo grupo parlamentar. Percebo a lógica da interpretação vigente, mas não a posso subscrever.

 

03
Jan18

A opacidade da especialidade

David Crisóstomo

 

No escândalo público sobre o decreto da Assembleia da República referente à alteração à Lei do Financiamento Partidário das Campanhas Eleitorais (e à Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, Lei dos Partidos Políticos e Lei de Organização e Funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos), o dedo tem sido apontado não apenas ao conteúdo das alterações legislativas (que não são objeto de discussão neste post), mas também à forma como foram legisladas. A comunicação social e os seus cronistas não se têm inibido (muito pelo contrário...) em usar termos como "secreto", "conluio", "clandestinidade" ou "às escondidas" quando se referem à forma como a Assembleia da República (isto é, os deputados que a constituem na presente legislatura) geriu o processo legislativo, nomeadamente no que diz respeito ao uso da figura do Grupo de Trabalho para discussão de várias propostas de vários grupos parlamentares de modo a criar-se um texto legislativo comum. O próprio Presidente da República alude a isto quando na mensagem de veto ao decreto da AR refere que o fez "com base na ausência de fundamentação publicamente escrutinável quanto à mudança introduzida no modo de financiamento dos partidos políticos."

 

Importa realçar que é irrelevante que os deputados tenham decidido carimbar de "informal" o grupo de trabalho criado para o Financiamento dos Partidos e das Campanhas Eleitorais - o grupo foi constituído no âmbito da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias no dia 22 de Março, onde foram indicados os deputados que o iriam constituir, ao abrigo do artigo 33º do Regimento da Assembleia da República. Como já foi referido na comunicação social, o grupo de trabalho teve várias reuniões que decorreram na Assembleia da República (foram aliás "Trabalhos Parlamentares" ao abrigo do 53º do Regimento) e um site próprio que, por se encontrar completamente vazio, é o principal objeto da denuncia de alegado secretismo.

 

Antes de mais, definamos e caracterizemos a figura dos grupos de trabalho. No estudo "O Estado Por Dentro", os autores dedicam um subcapítulo a estes:

"Os grupos de trabalho, especialmente os que tratam de iniciativas legislativas, são marcados por duas características: por um lado, a tecnicidade das suas discussões e, por outro, a descrição dos seus trabalhos. São debates sem intermediário, em que cada deputado representa directamente a opinião do partido sobre aquele tema. Por isso, dizem‑nos, estes são espaços mais fechados, não têm gravações nem televisões, contribuindo assim para a formação de algumas convergências". "Estes podem ser criados no âmbito de cada comissão e podem cumprir pelo menos uma de duas tarefas: discutir de forma pormenorizada e minuciosa as iniciativas legislativas na especialidade, com vista a uma tentativa de incorporação de contributos dos vários partidos numa versão única e final; e acompanhar um tema específico, reunindo com representantes do sector e conduzindo o desenvolvimento da legislação nesse âmbito."
Os autores do estudo referem ainda algumas situações que podem dar origem aos grupos de trabalho: "Como vários partidos optaram também por apresentar as suas próprias iniciativas legislativas sobre o tema, chegou‑se a um acordo entre os grupos parlamentares: nenhuma iniciativa legislativa seria votada na generalidade, baixando à comissão sem votação, e de imediato se constituiria um grupo de trabalho específico para tentar que os vários projectos apresentados dessem origem apenas a um. Há outros casos em que no Plenário são aprovados vários projectos de lei sobre o mesmo tema, com intenções semelhantes, embora com diferenças entre si. Como não podem dar origem a três, quatro ou cinco leis sobre o mesmo tema, na especialidade cria‑se um grupo de trabalho para que os vários projectos sejam transformados num projecto único a ser submetido posteriormente ao Plenário para a “votação final global”". Pelo que é público, o Grupo de Trabalho para o Financiamento dos Partidos e das Campanhas Eleitorais seguiu um outro método de criação (mas também usual), o de se procurar um "consenso alargado" entre todos os grupos parlamentares - neste caso sobre alterações que o Tribunal Constitucional tinha solicitado. Um outro caso similar (ainda que distinto) será o do Grupo de Trabalho para o Parlamento Digital, que também procurou reunir o maior consenso possível sobre as alterações às leis que regulam o direito de petição, a Iniciativa Legislativa de Cidadãos, o Regime do Referendo e o Regime do Canal Parlamento - ainda que a transparência dos procedimentos deste grupo não se compare com aquele no centro desta polémica e com vários outros.

 

Afinal, e também contrariamente ao muito que se tem escrito, os procedimentos deste grupo de trabalho não foram anormais face à práxis da Assembleia da República (honra neste ponto seja feita ao Paulo Tavares e à Filomena Lança). Nesta quadra natalícia, parece que parte substancial do país acordou para a falta de transparência de apenas um grupo de trabalho, incluindo individualidades que tinham a obrigação de estar mais informadas. Argumentar que o Grupo de Trabalho para o Financiamento dos Partidos e das Campanhas Eleitorais é "secreto" por reunir à porta fechada, por exemplo, é um contrassenso pois, salvo exceções, e dada a sua natureza, todos os grupos de trabalho se reúnem por regra à porta fechada - mesmo que reunissem "à porta aberta" não se imagina que tivessem muita cobertura dada a sua especificidade e multiplicidade - só em atividade existem neste momento 42 grupos de trabalho na Assembleia da República, ao que há que adicionar 2 subcomissões, 1 comissão eventual, 12 comissões parlamentares permanentes e, claro, o Plenário [enquanto escrevo isto ouço comentadores televisivos a responsabilizar o Presidente da Assembleia da República pelo funcionamento de um grupo de trabalho - espero que assim se perceba o quão absurdo isso é]; argumentar que o Grupo de Trabalho para o Financiamento dos Partidos e das Campanhas Eleitorais é "clandestino" por não ter atas (ou pelo menos não ter atas disponíveis para consulta pública) é não ter presente que a esmagadora maioria dos grupos de trabalho da Assembleia da República não tem disponível no seu respetivo portal as atas das reuniões. O mesmo parece acontecer nas Subcomissões ou inclusive na Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas (aliás, esta parece também ter tido uma série de reuniões à porta fechada). Só com exemplos desta legislatura:

 

turismo grupo.png

transportes publicos.png

mercado unico digital.png

reforma da floresta.png

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subcomissao igualdade.png

igualdade.png

transparencia reforço.png

Não ponho de todo de parte a situação de as atas existirem de facto mas simplesmente não estarem online (pelo contrário, prefiro sempre pensar nessa hipótese), mas convenhamos que atas que existem apenas para os olhos dos serviços da AR não servem de muito à causa da transparência.

 

Consideremos também que estas reuniões não são gravadas nem transmitidas pelo Canal Parlamento e que, mais importante, o mesmo acontece com as reuniões das Comissões Parlamentares permanentes onde não haja audições - isto é, as reuniões onde se faz o debate na especialidade e eventuais votações na especialidade de textos finais ou textos de substituição de projetos e propostas de lei nunca são gravadas e transmitidas (com a exceção do debate e votação na especialidade da proposta de Orçamento de Estado [era só o que mais faltava, convenhamos]). E se tem havido o hábito de publicar online os Relatórios das votações na especialidade (com diferentes nomes), a própria arquitetura do portal da AR, a inexistência de uma configuração uniforme destes e o formato em que os documentos são postos online (já encontrei relatórios em jpg...) não pugna muito pela acessibilidade do processo legislativo. E claro, só consultando ata a ata é que é possível perceber que deputados estavam presentes em cada reunião de comissão, dado que, ao contrário do que acontece com as faltas ao Plenário, não existe nenhum registo online das presenças às reuniões de Comissões.

 

 

Não estou com isto a querer dizer que aquele grupo de trabalho se comportou de forma totalmente banal nem que a recorrência destes procedimentos deva ser uma atenuante face a situações esdrúxulas que nele tenham ocorrido - o seu coordenador declarar que as "propostas eram feitas de forma oral e sem votação" não pode ser ignorado. Mas se quisermos ser consequentes com a critica de falta de transparência que tem sido feita ao processo legislativo em volta das alterações à Lei do Financiamento Partidário das Campanhas Eleitorais importa que não só não deixemos o assunto morrer com o veto do Presidente da República, mas também que sejamos objectivos sobre aquilo que estamos a criticar e comecemos a pensar em soluções concretas que sejam compativeis com o trabalho que se faz nos grupos de trabalho e nas comissões. Porque parte substancial daquilo que se parece censurar na publicidade deste processo não foi uma excecionalidade daquele grupo de trabalho ou daquele diploma - é uma constante do processo na especialidade português (que, convém dizer, está longe de ser dos mais opacos), onde aliás o grosso do trabalho parlamentar se desenrola. A vários órgãos de comunicação social, o presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (e também constitucionalista) Pedro Bacelar de Vasconcelos admitiu "tomar as medidas adequadas para superar esse défice de transparência”. Venham elas, eu cá as aguardo.

 

P.S. - Sobre o mesmo assunto recomenda-se muito a leitura deste artigo da Helena Roseta, que é de facto exemplar nesta área: além de ter o seu próprio site (http://www.helenaroseta.pt ), criou, como ela refere, este: http://habitacao.ps.pt

 

 

01
Dez17

E Portugal, que ganha com isso?

David Crisóstomo

É bom para o país? Que ganhamos com essa decisão? É do interesse nacional? No fundo, um célebre what's in it for us

 

 

Aqui entre nós, deixem-me desabafar, que isto hoje tem sido um cínico fartote de visão nacional-centrica em tudo quanto é sitio. Tudo a avaliar a ida do Centeno para o Eurogrupo pelo prisma "isso é bom para o país porquê?" e já está, que é a única pergunta que importa.

 

 

Epa, isto para quem vai pela esquerda devia ser simples, olhem, ganhamos não ter um liberal (Pierre Gramegna do Luxemburgo), uma conservadora (Dana Reizniece-Ozola da Letónia) ou um imbecil "socialista" (Peter Kazimir da Eslováquia) à frente dum barco cuja influência nas nossas vidas andamos fartos de reconhecer nos últimos sete anos - pois (isto também devia ser óbvio) os outros candidatos são estes e o Eurogrupo não desaparecerá caso Mário Centeno não esteja para ali virado. Mas depois ainda é o aviso estarrecedor de que esta eleição "vai-nos amarrar à ortodoxia liberal, à austeridade", pois imaginem, "e se houver um novo resgate aos gregos ou uma nova crise?" - enfim, que canseira, olhem, se Centeno nos amarrar é porque se calhar até concorda com isso e então, más noticias camaradas, temos um problema no Ministério das Finanças agora; e caso haja um novo resgate ou coisa parecida, mais vale não estar um idiota ou um sem noção inconsequente (ou um esperto com as prioridades erradas) à frente do Eurogrupo, como aconteceu até hoje, não? Até parece que não sentimos isso na pele. Vão perguntar aos gregos se não preferiam ter tido um Centeno em vez de um Dijsselbloem. Muitos estão, até os normalmente sensatos, hipnotizados pelo modo "Portugal não ganha nada com..." - desculpem-me, vejo os jogos da seleção e até sei o hino de cor, juro, mas que limitada mania esta de que estas eleições são só sobre nós & nada mais, como se não houvesse outros princípios, decisões, outros fatores em jogo par'além de Vilar Formoso.

 

Até sou capaz de perceber aqueles que acham que um ministro das finanças de um governo nacional devia focar-se somente nas finanças nacionais -  mas, caramba, dado que os estados-membros não estão hoje ainda dispostos a considerar a opção de que o cargo de Presidente do Eurogrupo deveria passar para as mãos de um Comissário Europeu responsável pelas finanças europeias, que é eleito e escrutinado pelo Parlamento Europeu, então deixemos de fingir que o tabuleiro do jogo não é este. Quer dizer, temos finalmente um ministro das finanças de jeito, reconhecido pelo seu mérito e por até estar do lado certo do debate ideológico, e o que dizemos a outros europeus é "este é da terra, não quero que ele esteja sequer atento aos problemas dos outros, não partilhamos, arranjem outro, este é nosso e só nosso"? 

 

E depois, claro, há as comparações com o Barroso - que bolas, além de serem insultuosas para o Centeno, parece que é preciso grafittar que Barroso foi uma nomeação que por cá foi, lá está, sempre somente vista pelo ângulo do "interesse nacional", onde só se pensou no alegado "prestígio da nação" e nunca noutros elementos, que por duas vezes foi nomeado por 2 governos de duas cores políticas diferentes, que dois parlamentos com maiorias distintas não contestaram, que reuniu uma espécie de consenso nacional que era bom ter um português aos comandos. Isto, até ele nos ter relembrado que, choque, ele podia ser português, mas não deixava de ser Durão Barroso. E bem que outros europeus desejaram que tivessemos tido isso em conta em devida altura. O problema do Barroso foi exatamente só termos pensado com as quinas e não com racionalidade política e ideológica.

 

 

Tenham lá paciência. Este hipsterismo "ai, Eurogrupo, tô néi aí" já enjoa. O mundo lá fora continua. E a pátria cansa.

 

 

09
Nov17

"Suspensão" não foi de todo a decisão mais apropriada

David Crisóstomo


Esta suspensão de mandato parece-me bastante inadequada - no sentido em que devia ter sido antes uma renúncia.

adelaide.png

 

O Estatuto dos Deputados impede desde 1989 o duplo mandato à Assembleia da República e às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas. Se mais razões não faltassem, fica difícil assumir a compatibilidade do sério cumprimento do mandato de representar os cidadãos de todo o país (n.º2 do 152.º da Constituição  e  n.º1 do 1º do Estatuto dos Deputados) ao mesmo tempo que também se cumpre o mandato de representar os cidadãos da Região (20.º do Estatuto Político-Administrativo da Madeira) - e o mesmo também se aplica à acumulação de ambos com o mandato de deputado ao Parlamento Europeu.

 

RAut.png

 

Quando foi eleito para a Assembleia da República, Carlos Pereira cumpria um mandato de deputado à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, para o qual tinha sido reeleito em Março de 2015. A 23 de Outubro suspende o seu mandato na assembleia regional para assumir o novo mandato na assembleia nacional, para a qual tinha sido eleito nas legislativas de Outubro de 2015 enquanto cabeça-de-lista pelo PS no círculo eleitoral da Madeira ("Carlos João Pereira, Deputado eleito em segundo lugar na lista de candidatos da Coligação Mudança para a Assembleia Legislativa da Madeira, por ter sido eleito Deputado na Assembleia da República e considerando a incompatibilidade legal com o cargo, vem requerer a V. Exa. (...) a suspensão do seu mandato a partir do dia 23 de outubro, inclusive, e enquanto se mantiver a referida incompatibilidade" -  Diário da Assembleia Legislativa, I Série, n.º 29, XI Legislatura, I Sessão Legislativa).

 

E nesta situação se encontrava até ao final da semana passada, quando foi  tornado público que pretendia regressar ao parlamento madeirense para, enquanto líder do PS-Madeira, defender a moção de censura que este apresentou ao Governo Regional. Ao Público  justificou este regresso ao Funchal para estar "onde acrescenta mais valor na defesa dos interesses madeirenses" - as prioridades politicas mudaram, é legitimo. O que é de legitimidade duvidosa é, no seu retorno à Madeira, não renunciar ao seu mandato na Assembleia da República, optando antes por apenas pedir sua suspensão - deixando assim aberta a possibilidade de, caso volte a mudar de prioridades, caso volte a achar que "acrescenta mais valor" em São Bento, regressar ao parlamento nacional.

acrescenta.png

 

 

A Assembleia da República não é uma espécie de ATL, não é um mero cargo onde os eleitos vêm ocupar o tempo livre e ganhar  gravitas  e experiência (ou ensinamentos e contactos, como  advogava outro candidato a deputado que nunca chegou a tomar posse devido ao regresso de Jorge Gomes ao parlamento) enquanto aguardam pelo melhor momento para um regresso ao seu palco político de predileção; o mandato no parlamento nacional (ou nos parlamento regionais) não é um posto de que se pode sair e entrar (e possivelmente voltar a entrar e a sair) quando politicamente dá jeito. Nada contra o Carlos Pereira pessoalmente, mas este tipo de mentalidade de quem trata o lugar na Assembleia da República como se fosse algo descartável que lhe tivesse saído na lotaria não é o mais condigno. Se deseja regressar à política regional e exercer o mandato para o qual foi legitimamente eleito, e que se encontrava suspenso, tal escolha devia implicar uma renúncia ao mandato nacional - e não uma mera suspensão, um "pode ser que volte outra vez, logo se vê".

 

E a própria aceitação deste pedido de suspensão por parte da Assembleia da República também pode não ter sido muito sensata, lamento. O artigo invocado do Estatuto refere "a ocorrência das situações", entra as quais a da alínea d) do 20.º, ou seja, ser "membro dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas".

suspende.png

 

 

Contudo, não me parece que estejamos perante uma nova "ocorrência", pois não "ocorreu" nenhuma eleição para o parlamento da Madeira nem nenhuma nomeação para o Governo Regional; confrontado com a "situação referenciada", o parlamentar em questão já tinha feito a sua escolha há 2 anos quando se viu perante a situação incompatível, como ele próprio identificou. Se agora decide reverter essa escolha e inverter a sua prioridade, tal é um direito seu, mas isso todavia não devia implicar uma nova "ocorrência" aos olhos do parlamento - ou então a Assembleia da República está admitir que um deputado pode andar indefinidamente a saltar dentro de uma legislatura entre os parlamentos de Lisboa e do Funchal sem nenhuma limitação, indo suspendendo mandatos conforme lhe for mais conveniente, aparentemente com todo o cabimento legal e político e,  in extremis , tornando inútil a cláusula da incompatibilidade existente. E esse laxismo dispensava-se.

 

 

 

P.S. - Sou bruxo.

 

06
Set17

Responsabilização Parlamentar Permanente

David Crisóstomo

 

Depois de ter andado a resmungar, e para ser mais fácil fazer posts deste géneroonde possamos perceber como votaram os nossos representantes democraticamente eleitos, nasceu uma nova casa:

 

 

Hemiciclo

 

 

Usem e abusem.

 

 

 

 

 

 

PS: o valupi é grande.

 

«As circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.»
- Ortega y Gasset

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