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365 forte

Sem antídoto conhecido.

Sem antídoto conhecido.

15
Jan15

O'Neill

Poema pouco original do medo

 

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos


Alexandre O'Neill

09
Jan15

Moi aussi je suis Charlie.

Somos tudo, somos todos os que sofrem, os que morrem, os que têm cancro e têm fome, frio; e não têm tecto na noite invernosa. Somos tudo isso sentados no nosso sofá sueco e diante da nossa televisão, que permite ver a vida dos outros que existem e não existem, de trás para a frente e da frente para trás, a qualquer hora que nos convenha. Tudo na nossa vida é extremamente conveniente, somos intrinsecamente bons e cheios de piedade.

Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, dai-nos a box.

05
Fev14

vida

A própria palavra assusta: cancro. Começou tudo há uns anos, com um susto, com exames, com a sentença. Cancro e dos maus. Felizmente a Medicina, tratamentos chatos, dolorosos, indignos de quem está doente. Depois parou e repousou. Já se estava a declarar vitória quando voltou em força, com outra palavra ainda mais assustadora: metástase. Susto, exames, sentença. Tratamentos novos, diferentes, felizmente a Medicina. Voltou outra vez, e outra vez e outra vez. Sentenças atrás de sentenças. Felizmente a Medicina. É uma pessoa forte, coragem, dizem os amedrontados (Deus queira que não me chegue a mim, sobretudo que não me chegue a mim)

Chega a todos, todas as doenças chegam a todos, até chegam a quem finge não as ver. É assim com a miséria humana, é assim com toda a menoridade da existência.
Uns vão vencendo, uns vão caindo, outros vão fingindo que nem vêem passar a cabeleira postiça, quanto mais o ser humano. 
Ganhar aqui não é sequer sobreviver, é não morrer sem lutar.
06
Nov13

Culpa

A menina acabou por ficar no lugar em frente ao meu. Três anos de vida sorridentes num cabelo desmazelado. A noite estava fria mas ela não trazia mais do que um casaco esgaçado de algodão sobre uma t-shirt estampada com um boneco amarelo. Veio a sopa e ela comeu em silêncio, como se nada mais houvesse para fazer quando se tem três anos e o mundo de uma sala de jantar de um restaurante tem tanto por onde passarinhar. Comeu a carne que lhe foi posta à frente a seguir. Eu preocupado pela tenra idade da cachopa e ninguém preocupado em dar-lhe a comida. Ela não procurou quem o fizesse e sorveu garfadas, com a calma de quem sabe que numa sala cheia de gente que sorri pateticamente a uma menina de três anos não há nada mais para fazer. O empregado ébrio deu-lhe então a escolher entre maçã assada, mousse de chocolate e melão. Ela escolheu melão, e eu, como a noite estava fria e certo de que uma menina de três anos não sabe fazer as melhores escolhas para si, pedi uma maçã assada, disposto a ter a caridade de trocar quando chegasse a altura. Comeu o melão que tive a caridade de despedaçar em cubinhos com medo que a menina de três anos se engasgasse na fruta fria e extemporânea.

No fim aconchegou-se no colo de uma senhora a quem chamou avó mas que não lhe é nada, só lhe dedica os dias que a mãe não pode e o pai não quer, o amor que sabe e que a mãe não sabe e o pai sabe lá. Enroscou-se no colo e adormeceu enquanto a avó falava para todos os lados da mesa comprida do jantar cujo tema servido não era o amor nem a caridade nem as meninas de três anos que não sabem que não é ali que devem estar nas noites frias.

Não era uma menina de Andersen nem de Dickens, era daqui de ao pé de mim. Tem um nome que não me disse, um destino que não pagou e uma família que o não é. Avança silenciosa para o futuro e nós sorrimos-lhe pateticamente desejando que não lhe falte nada, mas sobretudo que não nos incomode.

27
Jun13

A minha greve é igual à tua

Estou em greve.

 

Porque prefiro o meu nome desprezado pelos carrascos deste tempo, antes quero que os pulhas me cuspam do que me doa a consciência.

Trabalho para o Estado, num hospital público. Sempre achei que tenho o dever de não deixar um doente esperar, muito embora nunca os veja, muito embora apenas me passem à frente num ecrã de computador. Sequências de números que sofrem.

Aprendi assim, fui formado a comportar-me assim. Nunca fiz greve enlevado por este sentido do dever, acima do dinheiro, acima das convicções ideológicas, acima dos direitos que outros adquiriram para mim. Trabalhar para o estado representa ser funcionário dos doentes, não do ministro A ou do secretário de estado B.

Nos últimos dias o meu director tem pregado sobre a inutilidade da greve, que outrora fez, mas presencialmente, num gesto abnegado e heróico que não vê em mais ninguém. Debitou horas seguidas de discurso anti-greve, sem no entanto pisar a linha da ameaça, mas quase. Ouvi-o calado.

Falei com colegas que gostariam muito, mas o dinheiro faz falta. A mim também.

 

08
Abr13

Equilibrio

Há pessoas para quem o muro é largo, confortável, acolchoado até.

Lá no cimo vivem quentinhos, assépticos, contemplando as menoridades de ambos os lados do assento etéreo e superior que escolheram para viver. Dum e doutro lado há mãos sujas, às vezes de sangue, há lágrimas de arrependimento e esqueletos de mãos dadas. Há traumatismos graves causados pelo salto de quem passou de um para o outro lado e não quis equilibrar-se lá em cima.
O muro está crivado de balas de ressentimento, de prisioneiros da consciência que disparam mas não atingem o lado oposto.
Acima de todo o cheiro nauseabundo que é viver com as escolhas que fazemos o ar é limpo e respira-se a inimputabilidade.
O problema é que o cimo do muro se está a encher de gente e a queda será terrivel.
05
Mar13

Se grandolar não me chega.

Já se escreveu sobre a manifestação de 2 de Março tudo aquilo que quereria exprimir, e não vos quero maçar.

Já se escalpelizou o silêncio do povo e se interpretou o futuro que ele significa.

Aqui a Fernanda Câncio, aqui o Ricardo Santos, por exemplo, escreveram o que eu senti, e estou-lhes grato por isso.

Mas se não chega, se isto ainda não acabou, talvez tenhamos que cantar mais um pouco. Talvez até mudar a letra da nossa canção.

Porque ser perseverante é também isto.

 

Humilde proposta:

 

Coro Da Primavera
Zeca Afonso

Cobre-te canalha
Na mortalha
Hoje o rei vai nu

Os velhos tiranos
De há mil anos
Morrem como tu

Abre uma trincheira
Companheira
Deita-te no chão

Sempre à tua frente
Viste gente
Doutra condição

Ergue-te ó Sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores

Livra-te do medo
Que bem cedo
Há-de o Sol queimar

E tu camarada
Põe-te em guarda
Que te vão matar
Venham lavradeiras
Mondadeiras
Deste campo em flor

Venham enlaçadas
De mãos dadas
Semear o amor

Ergue-te ó Sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores

Venha a maré cheia
Duma ideia
P'ra nos empurrar

Só um pensamento
No momento
P'ra nos despertar

Eia mais um braço
E outro braço
Nos conduz irmão

Sempre a nossa fome
Nos consome
Dá-me a tua mão

Ergue-te ó Sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores

27
Fev13

Bom senso automóvel

O post do Rui sobre carros do estado trouxe-me à ideia investigar em que viaturas se deslocam os chefes de estado de outros países, nomeadamente os tão ricos como o nosso. Descobri aqui, e creio que neste assunto a fiabilidade é razoável, que tirando a França, que decerto o fará por motivos de interesse nacional, todos os outros países fazem transportar os seus chefes de estado e governo em veículos de gama alta, quase invariavelmente Mercedes Classe S e BMW 7. Dou, portanto, de barato que Cavaco e Passos andem neste género de carros.
Mas e o resto da pirâmide do estado? Terá necessidade de andar de berlina alemã executiva? Não, certamente que não. E não me venham com imperativos de segurança. Nem estou a invocar, tão pouco, motivos económicos, estou a falar de bom senso. Há uns anos tive oportunidade de meter conversa com um motorista de uma individualidade do estado português (homens poderosos que sabem muito, que os nossos homens na politica não se vedam nem um bocadinho ao telemóvel quando vão em viagem). O simpático senhor, à minha dúvida de qual a necessidade de fazer deslocar, a expensas de todos, o Sr Dr de BMW série 5 respondeu-me com a "dignidade" do cargo. Eu respondi-lhe que para mim a dignidade do cargo é para ser mantida por quem o ocupa e não pelo desgraçado do automóvel a quem só se pede que ande e não avarie.

Mas estava a ser parvo e continuo a ser inocente. Os governos mudam, a crise vai e vem, mas os carritos não mudam de gama.

A tradição de transportar gente importante nos veiculos de grande aparato de antanho, como os Rolls-Royce ou Daimlers ou mesmo os Mercedes 600, já passou. Hoje, em Portugal, nem mesmo o PR tem esse hábito. Hoje interessam os carros discretos que ofereçam segurança e rapidez. A imagem para o povoléu se intimidar já não é critério para escolher um carro (para isso há luzinhas azuis e sirenes). Mas se Hollande pode deslocar-se de Renault ou de Peugeot, Cavaco, mas principalmente  todos os outros por aí abaixo também podem. Bom senso, só isso.

 

26
Fev13

Incompreensão

Vamos ver se nos entendemos, o problema não é achar que Relvas tem direito à palavra, é ser estranho o movimento sincronizado de deploração da cena grandoleira/ISCTE. Quem me quiser explicar esta erupção coral de paladinos da liberdade de Relvas, destes e não doutros quaisquer, será bem vindo.

Parece-me que há uma certa incompreensão do que se está a passar no nosso país. Creio haver alguma ignorância ou pelo menos uma falta enorme de solidariedade para com o sofrimento das pessoas.

Eu não defendo nenhum linchamento público de Relvas, porque não o defendo para ninguém, mas acho que o que se passou não tem gravidade nenhuma.

E se há alguém que não anda a medir a consequência dos seus actos é o próprio Relvas.
«As circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter.»
- Ortega y Gasset

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